segunda-feira, 23 de junho de 2008

OS CAMINHOS DA EUROPA

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Quando o senhor Jorg Haider chegou ao poder na Áustria (o que aconteceu há pouco mais de meia-dúzia de anos), a comunidade internacional ficou sobressaltada, atendendo à confessada simpatia do cidadão pelo pensamento de um senhor chamado Adolfo Hitler.

A União Europeia (então a quinze) exerceu forte pressão sobre a Áustria e chegou mesmo a suspender as relações bilaterais com Viena.

Como os tempos se mudam e as vontades também, temos, hoje, a União Europeia dos senhores Sarkozy, Berlusconi, Barroso, Sócrates e parceiros de semelhante estatura política e moral a aprovar leis de imigração (com os votos favoráveis de muitos euro-deputados portugueses cujos nomes voluntariamente omito, mas que a História registará) que podem transformar a Europa numa espécie de 'guantánamo' de brandos costumes. E o senhor Haider, cínico e friamente vingativo, mas sempre simpatizante do velho chanceler alemão, a esfregar as mãos e a constatar: «E hoje vemos que temas que abordámos na altura (política de imigração, política de integração, fundamentalismo islâmico) e pelos quais fomos duramente condenados, entraram para a agenda política da União Europeia».

Porreiro, pá!

quarta-feira, 18 de junho de 2008

ABBUSOS

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Li, há dias, no «Público» que o deputado algarvio Mendes Bota criticou a expressão «Algarve espanhol» que consta num anúncio de um clube de golfe de Ayamonte e quer saber se o Governo português já tomou alguma iniciativa judicial para proteger o nome do Algarve «já abusado em tempos para efeitos imobiliários».

Leio, hoje, na primeira página do «JL»: «ALLGARVE, um banho de arte». Procuro no interior do jornal e, a páginas seis, descubro que «o Ministério da Economia, o Turismo de Portugal e a Fundação Serralves dinamizam várias exposições em Faro, Lagoa, Lagos, Loulé e Portimão, que prometem conjugar as delícias do sol e o prazer da descoberta. O «JL» mergulhou no programa Allgarve, e descreve-lhe com que cores e formas se faz este banho de arte.»

E, entre o Algarve espanhol e o Allgarve desta gente impenetravelmente estúpida que domina a vida política portuguesa, entre o «chico-espertismo» de Ayamonte e o «português» de Wall Street (ou o «inglês» da Covilhã?), venha o diabo e escolha.

PM

DE OUTROS - 3

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«A esquerda não possui ideias de seu porque deixou de ler, de estudar, de reflectir, de analisar. Ajeitou o pretenso discurso a essa anomalia política, designada por «pragmatismo», e impôs a sua definição de democracia ao funcionamento dominante do capitalismo.»

BAPTISTA-BASTOS

Diário de Notícias (18.06.2008)

domingo, 15 de junho de 2008

DEMOCRACIAS A PRETO E BRANCO

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O democrata Robert Mugabe aceita os resultados das eleições no Zimbabwe ... desde que ganhe. Caso contrário, voltará à guerra e, até lá, vai praticando a violência e enchendo as prisões de opositores.

Os professores europeus de democracia, habituados que estão a dar, da dita, lições a todo o mundo, querem, agora, ensinar os irlandeses a votar referendos. Podem votar as vezes que forem necessárias até que os resultados sejam do agrado dos primeiros. Mas em tempo útil. Caso contrário - rua!

Não percebem nem querem perceber que o resultado da consulta na Irlanda é "uma vitória da liberdade e da razão sobre a burocracia europeia e os projectos elitistas e artificiais", como assinalou o presidente checo Vaclav Klaus.

Dois continentes, duas cores e um mesmo e estranho conceito de democracia. E é com isto que temos de (con)viver.

PM

terça-feira, 10 de junho de 2008

O DIA DAS RAÇAS

Desde que me conheço (e já lá vão muitos anos) que ouço falar em raças.

Lembro-me, perfeitamente, daquelas vacas gordas (e isto em tempo de vacas magras) de "raça charolesa" e do sucesso que tiveram nas passerelles das feiras de gado.

Lembro-me, perfeitamente, dos cães de "raça pastor alemão" aos quais, injustamente, se associava uma certa intolerância aos judeus, homossexuais, comunistas e ciganos.

Lembro-me, perfeitamente, de uma colecção de cromos das "raças humanas" e das dificuldades que tive para completar o álbum - naqueles envelopes pequeninos de três cromos nunca me saía aquele preto (como não sou racista, vou alterar) nunca me saía aquele cidadão do mundo, de origem africana, que esticava o lábio inferior até nele conseguir introduzir um prato.

Lembro-me, perfeitamente, do dia da "Raça" com comendadores vivos e heróis, por vezes, mortos.

Lembro-me, perfeitamente, de, então, chamar a um algarvio reaccionário "algarvio de má raça".

Só não me lembro por que razão me lembro disto, hoje.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

DE OUTROS - 2

«O que perde o futebol não é o jogo propriamente dito, mas todo o barulho que se faz à volta dele. É impossível a gente alhear-se do futebol, falado, comentado, transmitido, relatado, visto, ouvido, apostado, gritado, uivado, ladrado, festejado, bebido. O futebol passa deste modo a ser uma chateação permanente. É que não há tasca, pastelaria, salão de jogos, barbearia, recanto de jardim público, quiosque, bomba de gasolina, restaurante, Assembleia da República, supermercado, hipermercado, livraria, loja, montra, escritório, colégio, oficina, fábrica, habitação, diria até, onde, de algum modo, não se ouça falar do jogo que decorre, decorreu ou decorrerá».

ALEXANDRE O'NEILL

«JÁ CÁ NÃO ESTÁ QUEM FALOU»
(Assírio & Alvim - 2008)

sábado, 7 de junho de 2008

ENTÃO, ATÉ 2018

«1968 foi uma revolta planetária. Se pensamos no fim dos anos 1960, descobrimos uma revolta no Leste como no Ocidente, no Sul como no Norte. Praticamente por toda a parte, somos confrontados com revoltas, ocupações de universidades ou de liceus, manifestações. A prova está em que se hoje fizerem um livro, é suficiente pôr dois algarismos na capa: 6 e 8 -68- e, automaticamente, as pessoas, seja na Turquia, na América latina, em Praga ou em Varsóvia, em Paris ou em Berlim, em Nova Iorque ou em S. Francisco, em Sarajevo ou no Rio, pensam imediatamente em 1968, na revolta do fim dos anos 1960. É isso que é preciso compreender».

DANIEL COHN-BENDIT

In:
FORGET 68

L'Aube (2008)
Entrevistas com Stéphane Paoli e Jean Viard


Livro imperdível que, lamentavelmente, não está traduzido em português.

PM

sexta-feira, 6 de junho de 2008

DE OUTROS - 1

Do «Diário Inédito» de Vergílio Ferreira (Bertrand):



Évora, 2 de Julho (1948)



Cresce-me para o interior o couro duro que me reveste. Não sei o que me fique de dócil cera, pronta a acusar a presença do acontecer da vida. De tal modo que, em certos dias, a imbecilidade, a traição, a hipocrisia, todas as vilezas humanas deixam-me indiferente. Procuro-me, aflito, e não me encontro para reagir. É como se vivesse sem sentidos ou os sentidos me fossem fria resistência passiva de sete fortes de cimento armado, sem armas de combate.

VELHARIAS

Publiquei esta crónica no semanário «Ponto», em Abril de 1981. Tem uma história curiosa que mete uma livraria no Cais do Sodré, um tradutor de russo, Barcelona e Blaise Cendrars (mais pormenores só por telefone ou à mesa de um café com espaço para fumadores).
Reli-a, agora, e aqui fica ressuscitada:


MAIAKOWSKI EM ÁFRICA

Maiakowski viajou comigo para África. Explico: numa manhã chuvosa de Março de 71
embarquei no «Niassa» que foi paquete e acabou transporte de carne para canhão. Des-
tino: Bissau, capital da Guiné e da guerra colonial. Na bagagem, além dos camuflados,
alguns (poucos) livros. Recordo um: «Autobiografia e Poemas», de Maiakowski, com
edição recente em Lisboa e que não faria a viagem de regresso.

Um livro num trilho de mata africana não era achado vulgar. Uma armadilha? Pre-
cauções redobradas e, finalmente, a certeza: perdido pelas guerrilhas um belo livro
de poemas de Nicolas Guillen, «Antologia Mayor», Ediciones Huracan, La Habana,
1969. Para mim, uma prenda inesperada que me proporcionaria umas horas de agra-
dável leitura. Recordo:

Soldado no quiero ser,
que así no habrán de mandarme
a herir al niño y al negro,
y al infeliz que no tiene
qué comer.
Soldado así no he de ser

Quando voltei a passar pelo mesmo trilho e para mostrar a Maiakowski que nem toda
infantaria ardia no desejo da vitória assassina, deixei o poeta da Revolução Soviética
no mesmo sítio onde encontrara o poeta da Revolução Cubana.
Dias passados, e após um dos muitos ataques ao aquartelamento, os pelotões de re-
conhecimento encontraram, espetado numa palmeira, um papel onde alguém escre-
vera a lápis:

Eis-me quite contigo.
E é inútil o passar em revista
penas,
azares,
e recíprocas feridas
MAIAKOWSKI

No quartel, ninguém percebeu.

PM

quarta-feira, 4 de junho de 2008

TURISMO DE QUALIDADE

Um hipotético turista cubano, segundo Senel Paz («No Céu com Diamantes»):

«Se pudesses viajar, disse-me um, aonde é que tu gostavas de ir? Bem, primeiro a Espanha, para comer fabada; depois ao México, para comer tacos e queijadas; depois ao Brasil, para provar as feijoadas, e a seguir, já de barriguinha cheia, a França e a Itália para ver monumentos».

DIFERENÇAS

António Guerreiro sobre o livro «A Terceira Mão», de Manuel Gusmão (Expresso de 19 de Abril de 2008). Extractos:
- «Metaforicidade política;
- «Significado meramente conteudístico, «gnómico» (...) venha inscrever-se de maneira mimética e se quebre a síntese»;
- «Introduzir uma temporalidade, à primeira vista paradoxal, de um «futuro outrora»;
- «O carácter dialógico do discurso»;
- «O eu lírico e da asserção subjectiva foi erradicado (e também o «pathos» que lhe corresponde».

Francisco José Viegas (CM de 4 de Junho de 2008). Transcrição integral:
«Leiam, leiam, leiam: «O Herói das Mulheres», de Adolfo Bioy Casares (edição da Cavalo de Ferro). Elegância argentina, humor de Buenos Aires, um clássico indispensável e delirante - e a lembrança de Jorge Luís Borges, seu amigo».

A diferença entre o burocrata pedante e o bibliófilo ou, se quiserem, a diferença entre a missa do 7º dia e a festa do livro.

PM

terça-feira, 3 de junho de 2008

SOMOS TODOS INDESEJÁVEIS - 3

Marcel Jouhandeau, francês, escritor, católico, anti-semita, reaccionário e provocador teve a coragem de dizer aos rebeldes de Maio de 68: «Acabareis todos notários». (Não cito a minha fonte para que ninguém fique a saber que, afinal, também li a «autobiografia razonada» de um filósofo espanhol).

Se, quando foi dita, a frase só podia ser entendida como uma provocação, quarenta anos depois adquire o estatuto de premonição.

Três exemplos portugueses: Jaime Gama, Presidente da Assembleia da República e elogiador oficial da vida e obra de Alberto João Jardim; Alberto Martins, líder do grupo parlamentar do PS cujas intervenções políticas têm um efeito muito semelhante ao Valium 10; Alberto Costa, aquele ministro que sempre aparece na televisão com ar de filipino crucificado na Semana Santa (como se alguém o obrigasse a ser ministro...). Pois bem, estes senhores eram, em 1968, jovens rebeldes e dirigentes estudantis. Quem se atreveria a prognosticar-lhes uma carreira de notário?

SOMOS TODOS INDESEJÁVEIS - 2

Pela ordem natural das coisas, os «soixante-huitards» são uma espécie em vias de extinção. Aos arrependidos dos últimos quarenta anos, juntar-se-ão os mortos dos próximos vinte e, em 2028, estarão todos (ou quase todos) a tentar revolucionar o Inferno.

Mas, até lá, e pelo menos de dez em dez anos, aí temos nós as comemorações de «Maio de 68» com debates, filmes, edições e reedições de livros, jornais, revistas.

Os «quarenta anos de Maio» não fugiram à regra e, em Portugal, os festejos estiveram à altura dos acontecimentos tendo mesmo ofuscado, lamentavelmente, as comemorações dos cinquenta anos da candidatura do General Humberto Delgado à presidência da República.

À lista de jornais e revistas que por cá circularam e trataram do tema (Magazine Littéraire, Notícias Magazine, Jornal de Letras, Visão-História, Le Monde 2, etc.) podia ser acrescentada uma outra de livros que, maioritariamente editados em França, a FNAC e a Livraria Francesa muito justamente destacaram. Destes, refiro apenas «Mai 68 Expliqué à Nicolas Sarkozi» (posteriormente, editado em português), de André Glucksmann (que continua radical, tendo apenas mudado da esquerda para a direita e, hoje, apoia Sarkozi) e de Raphael Glucksmann, porque pela sua leitura fiquei a saber que os «soixante-huitards» são, entre outras coisas horríveis, os grandes responsáveis pelo genocídio no Ruanda, em...1994.

Somos todos delirantes. Mas uns deliram mais do que outros.