sexta-feira, 6 de junho de 2008

VELHARIAS

Publiquei esta crónica no semanário «Ponto», em Abril de 1981. Tem uma história curiosa que mete uma livraria no Cais do Sodré, um tradutor de russo, Barcelona e Blaise Cendrars (mais pormenores só por telefone ou à mesa de um café com espaço para fumadores).
Reli-a, agora, e aqui fica ressuscitada:


MAIAKOWSKI EM ÁFRICA

Maiakowski viajou comigo para África. Explico: numa manhã chuvosa de Março de 71
embarquei no «Niassa» que foi paquete e acabou transporte de carne para canhão. Des-
tino: Bissau, capital da Guiné e da guerra colonial. Na bagagem, além dos camuflados,
alguns (poucos) livros. Recordo um: «Autobiografia e Poemas», de Maiakowski, com
edição recente em Lisboa e que não faria a viagem de regresso.

Um livro num trilho de mata africana não era achado vulgar. Uma armadilha? Pre-
cauções redobradas e, finalmente, a certeza: perdido pelas guerrilhas um belo livro
de poemas de Nicolas Guillen, «Antologia Mayor», Ediciones Huracan, La Habana,
1969. Para mim, uma prenda inesperada que me proporcionaria umas horas de agra-
dável leitura. Recordo:

Soldado no quiero ser,
que así no habrán de mandarme
a herir al niño y al negro,
y al infeliz que no tiene
qué comer.
Soldado así no he de ser

Quando voltei a passar pelo mesmo trilho e para mostrar a Maiakowski que nem toda
infantaria ardia no desejo da vitória assassina, deixei o poeta da Revolução Soviética
no mesmo sítio onde encontrara o poeta da Revolução Cubana.
Dias passados, e após um dos muitos ataques ao aquartelamento, os pelotões de re-
conhecimento encontraram, espetado numa palmeira, um papel onde alguém escre-
vera a lápis:

Eis-me quite contigo.
E é inútil o passar em revista
penas,
azares,
e recíprocas feridas
MAIAKOWSKI

No quartel, ninguém percebeu.

PM