terça-feira, 29 de abril de 2008

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA PARA JOVENS

É um lugar comum mas é verdade: o homem é um animal de hábitos. E eu habituei-me a prestar a melhor atenção aos discursos dos presidentes da República, desde o tempo do Américo Thomaz, vulgo, o «Cabeça de Abóbora». Quem perdeu -por ter nascido tarde ou por imperdoável distracção - a oratória do cidadão Américo não sabe o que perdeu. «É a primeira vez que venho a Castelo Branco, depois da última vez que cá estive». Assim começava para depois embalar num improviso que fazia rir as pedras da calçada. Coitado, morreu injustiçado sem o reconhecimento público dos seus dotes de humorista. O general Eanes ainda tentou rectificar essa evidente ingratidão da História, fazendo-o regressar do Brasil e dando-lhe, assim, uma segunda oportunidade, mas era tarde: o homem tinha perdido o pio.

Como dizia, habituei-me. E não há discurso presidencial (de fundo ou de superfície) que me escape. Gostei muito do discurso do presidente Cavaco Silva, no Panteão Nacional, aquando da trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro, e fiquei agradavelmente surpreendido por verificar que foi escrito por alguém que conhece e aprecia a obra do autor de «Quando os Lobos Uivam». Mas os meus preferidos são os do «25 de Abril» e para os ouvir preparo-me a rigor: fatinho cinzento, camisa rosa, gravata laranja ou, dependendo da conjuntura, fatinho cinzento, camisa laranja, gravata rosa (sem cravo na lapela, desde 2005). Já na sala, ouço o hino nacional de pé, em posição de sentido, e só depois me sento no bloco central do sofá, frente à televisão, mantendo sempre as costas direitas e as mãos cruzadas à frente do corpo, em sinal de respeito. E é nestes preparos e com esta pose que tenho ouvido as dissertações do Mais Alto Magistrado da Nação sobre os malefícios da corrupção, da exclusão social e os alertas para os perigos que a Pátria corre se não convencermos os jovens a abraçarem a vida política.

No que respeita à corrupção e à exclusão social, depois dos cavacais discursos, as coisas têm evoluído bem. Hoje, e com a entrada em vigor do novo Código Penal e do novo Código do Processo Penal, os corruptos e equiparados (activos e passivos) têm devidamente assegurados os seus direitos, liberdades e garantias - o que constitui um avanço civilizacional - e os excluídos e aparentados, agora orgulhosos donos de computadores oferecidos pelo Governo (na campanha «Nova Oportunidade») e beneficiários do socratiano choque tecnológico já podem enviar declarações de IRS e marcar mesa na Sopa dos Pobres através da Internet, comodamente instalados nas suas caixas de cartão, em funções Tê Zero, pondo, de uma vez por todas, fim às intermináveis e humilhantes bichas a que estavam sujeitos em frente das repartições de Finanças e dos refeitórios da «Sopa do Sidónio». Só vantagens: aumento da produtividade da máquina fiscal, mais tempo disponível para a arrumação de carros, melhor imagem de um país que se promove «lá fora» com a alcunha de West Coast e o silenciamento de uma certa aristocracia de esquerda esmagada pelos resultados apresentados pelo actual Primeiro-Ministro.

E a reconciliação dos jovens com a política? Calma. Nada que não se consiga se houver convergência de esforços entre o Estado e a «Sociedade Civil».

Como, neste blogue, a «Sociedade Civil» sou eu, puxo já dos galões da minha biografia (que, grosso modo, se resume a uma data de nascimento e a um número de contribuinte) e aqui deixo desinteressados conselhos à juventude. E que seja tudo a Bem da Nação.

Convém que, aos dezoito anos, o jovem já tenha no seu curriculum umas agressões à avó para ajudar a evolução da osteoporose e do reumático de que a senhora tanto se queixa, uns telemóveis partidos na cabeça da professora de português que teima em não aceitar a ortografia de SMS nos testes da escola, umas manifestações rascas na Avenida 5 de Outubro com exibição das partes baixas e um atestado de inimputabilidade (vitalício!) passado por aquele pedopsiquiatra que vai muitas vezes à televisão.

Com esta folha de serviços, dirige-se à sede de uma «Jota» qualquer (todas elas produzem bernardinos, perestrelos, pedros duartes, jovens historiadores como aquele do PP que descobriu que um miúdo de quatro anos foi o grande agitador político do «verão quente» de 75), inscreve-se e inicia a sua carreira política. Aviso: evitar o Bloco de Esquerda e as Juventudes Popular e Comunista por terem grupos parlamentares com poucas vagas (embora se possa sempre mudar sem perturbar a espiral de ascensão política).

Nas primeiras legislativas após a inscrição, instala-se num Gabinete de Estudos e aconselha os candidatos em matérias que interessam a juventude: legalização das drogas leves e comercialização daquelas pastilhas que torram os cérebrozinhos em menos de seis meses. É bom deixar a colagem de cartazes para os camaradas e companheiros trolhas de profissão que estão mais habituados a lidar com paredes.

Para a legislatura seguinte exige aos cotas do partido um lugar elegível nas listas de deputados, ao abrigo das quotas da «Jota» e aproveita os quatro anos de deputação para a formação académica: matricula-se num curso por correspondência da «Independent University of Bafatá» (Guiné-Bissau). Arranja uma licenciatura em «Engenharia de Consensos» e um Mestrado em «Balanta Técnico». A Independent University of Bafatá não tem Internet nem faxes, mas ultrapassa essas pequenas limitações aceitando que os exames se façam em aerogramas que, em tempos, foram distribuídos gratuitamente pelo Movimento Nacional Feminino.

Com estes dois diplomas afixados na parede da sala, mesmo ao lado do atestado do pedopsiquiatra, o jovem abre as portas do poder executivo: Secretário de Estado para a Conservação dos Pântanos Nacionais, Ministro das Obras Privadas a Norte do Tejo. Aqui chegado, o jovem não segue o Cherne e abandona a burocrática carreira pública que, certamente, o levaria, sucessivamente, a Primeiro do País, Terceiro da Deserção, Primeiro da Europa e, quem sabe, Primeiro do Mundo, mas que o obrigaria a ler os discursos de um tal W. Bush sobre as armas nucleares do Iraque, as obras escolhidas (escritas a quatro mãos) da parelha Blair-Aznar sobre o secretismo das rotas aéreas para Guantanamo e decorar, para depois citar em entrevistas ao «Expresso» tiradas de um filósofo espanhol e do Emplastro do Porto (para os ignorantes aqui se deixa nota biográfica do Emplastro: é um jovem filósofo portuense que apareceu em todas as televisões com os dentes estragados e, hoje, continua a aparecer -mas com uma dentadura tão branca que faz inveja a qualquer burro de cigano em dia de feira de gado ou a qualquer ministro da Defesa de país Nato- para debitar sempre aquela frase genial que espantou a Humanidade e o tornou famoso «O Pinto da Costa é meu pai»).

Segue-se um curto período de nojo (atenção: este nojo não significa asco nem designa o tempo que decorre entre a morte do marido e a primeira queca da viúva. Este nojo é apenas o prazo - estipulado por lei, já que a ética republicana passou de moda- necessário e suficiente para transformar os glúteos do ex-ministro em glúteos do senhor administrador) e, logo depois, a glória dos grandes ordenados, prémios de gestão, mordomias, PPR(s), etc., etc., etc.

E pronto. Temos o jovem integrado. Só lhe falta uma Comenda, mas o 10 de Junho já não demora.

PM

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O ACORDO HORTO-GRÁFICO

Sigo com óbvio interesse o debate sobre o acordo ortográfico e anoto os potenciais benefícios ou malefícios resultantes da sua ratificação. Atendo aos argumentos de linguistas, filólogos, escritores, críticos literários e leitores atentos de cada uma das partes e dou por mim, muitas vezes, a reconhecer em todos eles uma certa razão.
Só não aceito, de todo, que, em nome dos 'mercados' e da geo-estratégia, se baixe o nível de uma discussão que se quer séria e elevada.
O português não é nem será uma língua de negócios e, sendo assim, que importância para os 'mercados´ poderá ter um errozito ortográfico, em português actualizado ou atualizado, num telegrama da Reuters, numa carta comercial ou nas instruções de um produto fabricado (made in, em português pós-moderno) em Portugal, no Brasil ou em Angola? E uma resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a invasão do Iraque, por exemplo, tem mais ou menos eficácia se redigida em português do Brasil?
Com acordo ortográfico ou sem acordo ortográfico, continuarei a ler, em português normalizado ou livre, Almeida Faria, Luandino Vieira, Baptista-Bastos, Mia Couto, Gonçalo M. Tavares, Rubem Fonseca, José Luís Peixoto, Pepetela, José Saramago, João Melo, Álvaro Guerra, Clarice Lispector, Francisco José Viegas e muitos, muitos outros.
Não vivo, pois, particularmente angustiado com o destino do acordo ortográfico preparado pelas Academias de Portugal e do Brasil com eventuais contributos de especialistas de outros países de língua oficial portuguesa.
O que verdadeiramente me preocupa (e muito) é o acordo horto-gráfico que está a ser preparado (já não tão secretamente como isso) pelos piños, çantanas, cuelhos, çócrates e jamés de várias partes do mundo e que nos vai obrigar a ir para o Allgarve, em carrinhos "comprados" em lísingue, com um ceprede baixo, a combater o cetresse com a leitura (recomendada pela directora de marquetingue da Tupperware) dessa obra prima da literatura westcoastiana que dá pelo portuguesíssimo nome de "I'm In Love With a Pop Star".
Pessimismo? Esperem um pouco e hadém ver se os allarves não vão pôr os naturais de West Coast a escreverem assim, ou ainda pior, com ou sem erros de horto-grafia.

PM