segunda-feira, 15 de maio de 2017

Salvador, salvador

"Salvador, qué buen nombre tienes." Tem barba e não é mulher barbuda. Sobe para o palco e canta para o microfone sem flics-flacs de costas para nos distrair nem mise en scène de arquitetos de interiores par nos impressionar. Simplesmente canta. Canta palavras, assim: "Talvez devagarinho possas voltar a aprender", e é devagarinho que nos canta. Sei lá se sente, faz-nos sentir que sente. E nós sentimos. Ele arma-se para essa função de nos fazer sentir, assim: se canta o simples, "peço que regresses", "meu bem", "o meu coração pode amar pelos dois", então, ele, os cabelos arruma-os com os dedos, não os transforma em peça de pastelaria. Na primeira volta do festival, a dele foi a única canção que não foi em inglês. Mas no Azerbaijão entenderam-no. Porque não? Pensavam que quem amou Bob Dylan, no Minho e nos anos 60, sabia-lhe o inglês como quem adivinha um futuro Nobel? Os dedos de Django Reinhardt falavam cigano e o mundo entendia-lhe o jazz. "A música é para sentir", disse Salvador, ontem, quando o parabenizavam pela glória de há bocadinho ainda. E dizendo-o ele levou a mão ao peito para os surdos o ouvirem. Abre os olhos como um palhaço porque ele está no palco, como um palhaço. Ator, artista. E tão, tão inteligente. Ah, não notaram... Pois, não era para notar. Não dar conta foi meio caminho para pôr a Europa rendida, ela, já tão farta de tanta coisa que dava para perceber que também o Festival da Eurovisão tinha de mudar. Ele percebeu. Ele, Salvador, como já um mês, no El País, a cronista Elvira Lindo lhe chamou, entendendo tudo: "Salvador, qué buen nombre tienes."

Ferreira Fernandes
DN