sábado, 16 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Empada, 28 de junho de 1971


Q.,


Chegámos aqui a 13 de maio. A 28 de maio, depois da saída dos 'velhinhos', assim se diz dos que vão avançados em tempo de comissão, assumimos a responsabilidade da zona. Repara no pormenor e no simbolismo das datas: 13 de maio e 28 de maio. Nossa Senhora, em Fátima, lá pelos idos de 17; o fascismo, em Braga, 'cidade santa da revolução', como lhe chamava o avejão de Santa Comba, lá pelos idos de 26. E agora nós, a 13 e a 28 de maio do ano da graça (ou desgraça) de 1971, aqui em Empada, soldados da Fé e do Império, bíblia ao alto, G3 em punho, lutando pela conversão dos 'terroristas' e pela perenidade do Estado Novo e do Portugal do Minho a Timor. Heróis do mar, nobre povo, nação valente. Imortal!

E o que é Empada? Um quartel, uma tabanca à volta onde se amontoam as populações que abandonaram as aldeias limítrofes e hoje quase desaparecidas, levadas pelas chuvadas fortes e engolidas pelo capim, arame farpado em toda a volta, os nossos postos avançados com metralhadoras pesadas, bazucas, morteiros, cartões de visita a apresentar, para primeira impressão, a visitantes não convidados, mil metros de terra batida a fazer de pista para poiso de pequenas avionetas, tendo do lado de cá também um posto avançado com o material já descrito e mais um obus 8.8, velhinho dos anos 20, mas bem conservado, muito honesto e eficiente - actua em tiro curvo e tiro directo e bate-se, galhardamente, porque para isso tem alcance, com os novos canhões sem recuo e morteiros 120 que, do lado de lá, à confortável distância de oito ou dez quilómetros, nos enviam 'ameixas' de criar bicho. Empada - uma tradução portuguesa das aldeias estratégicas que os americanos criaram no Vietname. À volta, das 'estradas' restam dois ou três quilómetros que vão até ao pequeno cais no rio grande de Buba (na verdade, uma ria) e os caminhos fazem-se caminhando como tanta gente já disse, até o irmão Josemaria Escrivá de Balaguer, da Opus Dei. Caminhando, caminhando por trilhos largos de centímetros, nem ao metro chegam, entre capim, no meio da mata, atravessando pântanos passo a passo, pernas enterradas, uma a uma, até ao joelho, em lama de meter nojo. Com um efectivo mínimo de noventa homens, dois pelotões de tropa mais um pelotão de milícias africanas, caminhando em fila indiana a intervalos de três metros, por razões de segurança, uma bicha que nunca mais acaba, quase trezentos metros, vinte milícias à frente, fazem de pisteiros, conhecem bem o terreno, identificam pegadas de homens e bichos, têm experiência de guerra, sabem das manhas da guerrilha. O primeiro branco sou eu e não é por querer dar patrióticos e heróicos exemplos - quero aprender, aprender o máximo, aprender tudo de guerrilha e contra-guerrilha para melhor salvar peles, a minha e a dos que vieram comigo. É o melhor serviço que posso prestar à Pátria, essa entidade mítica que enche a boca dos que nos mandaram para aqui.

A área para onde viemos 'em missão de soberania' é considerada, pelo sempre glorioso Exército português, zona de intervenção do Comando-Chefe. Já para o PAIGC, é considerada zona libertada. E, pelo que já me foi dado ver, parece-me que estes últimos têm alguma razão.Têm gentes e aldeias do 'lado de lá' e não muito longe de nós. Durante o dia, fazem alguma cerimónia nas saídas porque nós temos a grande vantagem do apoio aéreo (os Fiat, partindo de Bissau, põem-se aqui em doze minutos e, depois, picando a quinhentas milhas à hora, metem as 'ameixas' onde querem, quase com precisão de 'snipers'. Mandam-nos estender as telas vermelhas para assinalar a nossa posição, fazem o servicinho bem e depressa, desejam-nos boa sorte pelo rádio e regressam à base. Já tivemos de os chamar para uma situação de aperto, já os vimos actuar, falo do que sei e compreendo a 'cerimónia' das guerrilhas). À noite, os cerimoniosos somos nós. As patrulhas e emboscadas fazem-se com cuidados redobrados, coração mais agitado, cu mais apertadinho, em silêncio e sem cigarros (a chama do isqueiro e o cheiro do tabaco são sinais que nos podem sair caros...). Já eles, bons conhecedores do terreno, experientes, movem-se à vontade e chegam a instalar-se e a atacar com Kalashnikoves e rockets a cento e cinquenta metros do arame farpado. Um atrevimento que abuso seria se a terra não fosse deles.

Estamos aqui há pouco mais de um mês e já sofremos quatro ataques (embrulhámos, como se diz na gíria, quatro vezes). Às armas ligeiras respondemos a partir das valas, às armas pesadas lá respondemos com os morteiros e o obus. É perigoso e barulhento, mas lá nos vamos safando. Tem havido feridos civis, mas a nós os deuses não nos têm abandonado. Antes assim.

De toda esta situação tiramos nós, infantaria do peido e coice, uma vantagem: não fazemos operações ofensivas. Essas estão guardadas para as tropas especiais, tropas de elite, se por elite entendermos os mais pobrezinhos de espírito, os dos testes escritos mais fracos, os fisicamente mais aptos, os primeiros a tatuar, para que se saiba e fique até ao fim da vida, "Guiné - Sangue, suor e lágrimas",  os escolhidos e treinados para se aprimorarem na arte de bem matar, os audazes que a sorte protege, como lhes dizem, eles acreditam, mas nem sempre acontece. Que o Altíssimo os proteja (e não estou convertido a nenhuma religião, 'me cago en Diós' como os anarquistas espanhóis, estou a ser egoísta - da sorte e da eficiência deles pode depender o nosso 'bem-estar').

Aí tens, pois, um panorama, uma vista geral das terras e gentios (os que estavam e os que chegaram) deste torrão tão português como o Alentejo moreno ou o verde Minho (Ah, ah, ah!). Mais pormenores nos próximos capítulos, falta muito tempo para o fim.

E:

Beijo-te,

P.