sábado, 16 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Empada, 31 de março de 1972


Q.,



Há um ano, ou por aí, ao ver-me entrar na livraria 'Opinião', o Hipólito disse-me logo "Tenho cá uma coisa para ti" e foi à gaveta com protecção anti-bófia. Trouxe de lá um livro que circula clandestinamente: "Poesias e Cartas", do José Bação Leal. Trouxe o livro comigo.
E, hoje, o José Bação Leal é meu amigo íntimo.
Mataram-no em Moçambique, no hospital de Nampula, mas a mãe não o deixou morrer: foi bater à porta dos amigos do filho a quem ele tinha escrito; juntou cartas aos poemas dele, que tinha resgatado do cesto dos papéis, para onde ele os atirara; reuniu o material e pediu um prefácio a um homem bom, solidário, corajoso, o Urbano Tavares Rodrigues. Mãe coragem e editora pôs o livro nos circuitos das livrarias que têm uma 'secção especial' para clientes 'especiais'. E o Bação Leal continua vivo.

Mandaram-no para Moçambique, lá pelos idos de 64, para a guerra, pois claro, e com o carimbo vermelho PS (politicamente suspeito). Mas ele incomodava muito: tinha opiniões e nem sempre favoráveis à guerra e aos seus autores e, suprema heresia: manifestava-as e em voz alta; lia revistas francesas e isso o levava a longos interrogatórios feitos por um major; contestava a qualidade da comida e era ameaçado pelo comandante que o acusava de estar a instigar um levantamento de rancho; 'foi aos cornos' a um oficial de transmissões (é preciso cuidado com os oficiais de transmissões, têm acesso a informação sensível e, por isso, são muito 'peneirados' na selecção, alguns são mesmo 'pideirados') e foi punido com cinco dias de prisão. Mas era pouco, levou mais uma pena acessória de transferência lá para cima, para Vila Cabral, Metangula, lá bem no meio do que é conhecido pelo 'estado de minas gerais'. Acertaram em cheio: pouco tempo depois, uma mina anticarro com a força, sopro e barulho que lhe são próprios, atirou-o ao ar, bem alto, mas ele caiu de pé. Com os ossos doridos, e uma dor de cabeça infernal, lá foi transferido para o hospital de Nampula. E a dor de cabeça sempre a aumentar e ele a dizer (e a escrever) "Prefiro o Vietname a estas dores de cabeça. Era boa altura de me mandarem para casa." No hospital diziam-lhe que era um ataque de sinusite e ministravam-lhe anestesiantes. E as dores a aumentar, sempre a aumentar e às queixas sempre lhe respondiam "É da sinusite". Não era sinusite, era o sangue a correr no cérebro por caminhos indevidos. Morreu ("suicidaram-no!") para alívio de muitos. E não foi de sinusite.

Os arquitectos que lhe 'projectaram o jazigo' esqueceram-se de um pormenor: a mãe não o deixou morrer. Lançou o livro que é um libelo acusatório. Circula hoje clandestinamente mas, um dia, será um bom documento para ser lido no nosso improvável tribunal de Nuremberga. Veremos. Até lá, o Bação Leal (em livro) anda comigo, andará sempre comigo. É o meu amigo íntimo, solidário, é o amigo que me ensina a evitar os caminhos minados, é o amigo que, permanentemente, me diz "Cuidado com a sinusite".

E eu tenho aprendido. Por isso te posso escrever e mandar muitos

Beijos,

P.