quinta-feira, 14 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Bissau, 16 de junho de 1972


Q.,


Ela rondou, rondou. Andou mais de um ano a fazer negaças.  A ameaçar com minas, balas, granadas, doenças. A meter medo. E sempre a bater ao lado, mas a marcar presença, a espreitar uma oportunidade: eram os feridos, eram os mortos civis, eram os feridos, eram os mortos das guerrilhas, eram os feridos, eram os mortos militares, como estes aqui à nossa frente, vindos de todos os pontos da Guiné, na capela do Hospital Militar, urna coberta pela bandeira nacional, guarda de honra, continência de luva branca, funeral até ao cemitério de Bissau a aguardar transporte para a 'Metrópole'.

Habituámo-nos a este macabro convívio. E de tantas vezes dela nos safarmos, chegámos a acreditar, sobretudo depois da nossa vinda para Bissau, que, afinal, isso da morte era uma questão que só dizia respeito aos outros. Lamentávamos, comovíamo-nos e chorávamos, até, nas cerimónias fúnebres, amaldiçoávamos a guerra e quem a provocava e mantinha, gritávamos "Tirem-nos daqui!", estávamos fartos, ansiávamos o dia do regresso, chamávamos pela 'Peluda' e quem cá ficasse que se derenrascasse e o último que apagasse a luz.

Pois. Até que. Até que, ontem, ela nos bateu à porta. Brutal, como sempre e, desta vez, insuportavelmente cobarde. Dois soldados, um do meu pelotão, foram mortos. Mortos às mãos de um inimigo que, subrepticiamente, se vai aproximando de todos nós, silencioso, camuflado, insinuante - a loucura. 
Estavam no serviço de guarda ao Hospital Militar os soldados que ontem morreram.  Tinham saído de turno, descansavam na casa da guarda. E o 'inimigo', na pessoa de um soldado internado na Psiquiatria do Hospital, apareceu, pegou numa G3 que estava no armeiro e disparou à queima-roupa. Um tiro no peito de um, um tiro na cabeça do outro. Os dois mortos, logo ali. Foi assim, quando menos se esperava, onde menos se esperava. Fizemos o funeral com as honras militares habituais,  lá estão numa casa mortuária do cemitério de Bissau a aguardar transporte de barco para Lisboa. Do soldado que disparou pouco se sabe: estava internado em Psiquiatria, internado em Psiquiatria ficou. E também não se sabe, talvez nunca se venha a saber, por onde andou, o que viu, o que fez, o que lhe fizeram para chegar aqui.

Soldados 166660670 e 16747970 abatidos ao efectivo da unidade. Acidente com arma de fogo. Publique-se. O comandante - assinatura ilegível.  Assim ficará registado nos papéis oficiais. Trasladação por conta do Estado, pensão de sangue e outras burocracias - tratar no Distrito de Recrutamento mais próximo de si. Assim será dito às famílias. Assunto encerrado.

E, assim:

 Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!


Q.,

Faltam nove meses para o fim do pesadelo. É muito tempo, dá para muitas surpresas. E se, por acaso, um dia de mim ouvires dizer que parti tão cedo deste mundo descontente e repouso lá no céu eternamente, pergunta ao mensageiro se foi doença súbita ou acidente com arma de fogo. E depois, olha:

Depois para teu bem
e enquanto esperas que chegue alguém
vai falando em mim
como se eu continuasse a viver
e o morrer não fosse um fim

Beijos,

P.