quarta-feira, 13 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.


Empada, 1 de Maio de 1972


Q.,


Já temos data marcada para o embarque para Bissau. Estamos em fase final de passagem de testemunho à Companhia que nos veio render. Ontem, saí uma vez mais para o mato para mostrar aos 'periquitos', termo usado para definir os recém-chegados à Guiné, os terrenos que irão palmilhar nos próximos tempos. Julguei ser a minha última saída para o mato. Enganei-me, hoje voltei ao mato.

Por volta da hora de almoço, ouvimos o som cavo de um rebentamento. Percebemos que era de uma mina, não muito longe do quartel. Temos tal experiência de sons de explosões que até no meio de um ataque feroz distinguimos os assobios das granadas de canhão dos assobios das granadas de morteiro. Pela intensidade do som de saída das granadas, conseguimos calcular, aproximadamente, a distância a que estão as armas a disparar. A 'música' de um morteiro a cinco quilómetros é diferente da 'música' de um canhão a oito quilómetros. Logo a seguir ao rebentamento, chegou uma mensagem rádio do nosso pessoal que estava no mato e regressava: estavam a cerca de dois quilómetros e tinham um ferido grave, pediam uma maca para transportá-lo e solicitavam uma evacuação 'yankee', a mais urgente, com enfermeira, para o Hospital Militar. Lá fui com o meu pelotão e com a maca. Fomos em passo largo, como as circunstâncias impunham, mas sempre a olhar para o chão para verificarmos bem os sítios onde púnhamos os pés, mais sobressaltados do que nunca.

No local, percebemos que o ferido era o Braga, um furriel 'periquito' que tinha saído pela segunda ou terceira vez para o mato. Estava deitado, coberto de pó, a balançar-se de um lado para o outro com as dores do ferimento e do desespero. O cabo enfermeiro já tinha feito o seu trabalho: soro, garrote na perna e coagulantes para estancar a hemorragia, anestesiantes, a canela envolta em algodão, gaze, ligaduras, já vermelhas do sangue. O pé tinha voado e desaparecido. Lá trouxemos o ferido. Vim sempre ao lado da maca a falar com ele, a tentar evitar-lhe o desânimo, do outro lado da maca ia o cabo enfermeiro, a segurar o saco do soro. Julgo que ajudei a mantê-lo consciente, mas não consegui animá-lo. Às tantas, disse-me ele: "A minha vida acabou". Respondi-lhe com sinceridade: "A tua vida não acabou, para ti só acabou a guerra. Com uma prótese, fazes a tua vida com normalidade". 'Normalidade' disse eu, como se fosse normal perder-se um pé numa mina, aos vinte e dois anos, como se o crime continuado desta guerra, ao fim de tantos anos, tivesse adquirido o estatuto de normalidade, como se fosse normal haver uma geração com dezenas de milhares de estropiados, como se normal fosse termos os cemitérios cheios de campas de jovens. 'Normalidade', disse eu... E o cheiro do sangue vivo, doce, penetrante, pegajoso a entrar-me pelo nariz e a ficar colado. E eu a ficar fodido, cada vez mais fodido com isto tudo.

Quando chegámos a Empada, fomos directos para a pista. A 'Dornier' já lá estava à espera com o piloto e a enfermeira pára-quedista. E o Braga lá foi, duas semanas depois de ter chegado ao campo fortificado de Empada. Só com um pé.
O piloto, um furriel já perito em trabalhos de evacuação de feridos, tentando desdramatizar a situação e animar o Braga, piscou-lhe o olho e disse à enfermeira: "Tem cuidado com as aproximações que ele tem as duas mãos operacionais.". O Braga sorriu. Foi bom.

E foi um dia triste, foi mais um dia triste neste campo fortificado de Empada, baluarte, perdido no sul da Guiné, da defesa da Civilização cristã e ocidental. Que Deus seja louvado. Ou que a sua ausência venha em nosso auxílio.


Ah vazio! Eterno vazio!
vais-me matando aos poucos
estou farto de não viver
não tarda estarei louco
ou morto sem morrer

Beijos,

P.