In memoriam, ou um gosto e três vinténs…
(...modestamente, depois de ter relido As Rosas de Atacama, do
Sepúlveda.)
Moderemos os lábios!...
Bíblia, Salmo 141,3-4: Põe, ó Senhor, uma
guarda à minha boca: vigia a porta dos meus lábios!.
Seguramente uma boa, sábia e muito conveniente prática, nunca me
atreveria a dizer o contrário!... manda a cautela que a sigamos, e já agora, acompanhada
dos caldos de galinha da legenda... Mas há línguas “desacauteladas”, o que é
que se lhes há de fazer!... e destemperadas, para as quais o bíblico preceito,
se me é permitido, não é ali tido nem achado… ou porque são, de seu natural, “destravadas”,
ou porque destravam quando menos se espera: o caso é que, de tanto engolirem em
seco e de tantos e tais desaforos se terem visto na contingência de, em
silêncio e “a dente queixal”, terem levado para casa, se lhes acabou por
relaxar o “pinchavelho” da prudência, a patilha de segurança ali entre o
gatilho e o cão que percute a espoleta do cartucho, entre o dedo que dispara e
a escorva que fulmina…
“Pirum Cego”, uma alcunha, anos
50/60 pelo Natal, um quintalão calcetado no Alentejo, malvas num alegrete, um
alpendre, provavelmente uma charrete, uma escada de pedra que desce de uma
varanda ampla de alvenaria, a boca caiada de um poço… Um senhor de terras, botas de prateleira,
capote, calça de saragoça, já escanhoado àquela hora, o humor variável, manda
entrar para o quintalão Pirum Cego e mais a dúzia de velhos pobres, ou de
pobres velhos, tanto faz, “tirados à sorte” (!) para receber as roupas que uma
criada de crista e avental branco traz numa alcofa grande, uma gorpelha de
esparto, rasa e pesada com as roupas doadas. Os velhos “tirados à sorte”,
perfilados como se para revista numa parada, vão recebendo cada um, de olhos no
chão, o seu par de calças de cotim, muito agradecido à criada da crista, a sua
camisa de flanela, muito agradecido à criada da crista, as suas ceroulas de
nastro (as suas “ciroilas” de nastro), o seu cobertor de papa, (até nem estava
nada mal!...), tudo muito agradecido à criada da crista e ao senhor de terras que assiste, como que alheado
de tudo aquilo, presume-se que ocupado em atiladas contas de cabeça sobre o
“estrago” causado pelo inusitado abrir dos cordões à bolsa, que “a vida custa a
todos!”, enquanto fuma, distante, um cigarro numa boquilha… esvaziada a
gorpelha, recua pressurosa a criada da crista e avança titubeante Pirum Cego, o
mais letrado dos velhos e como tal, nessa distintiva condição, designado para
os agradecimentos da praxe, como é de uso… e tanto avança que fica logo cara a
cara com o ofertante das calças e dos cobertores de papa, das “ ciroilas” de
nastro… Faz-se silêncio, o que é natural nestes preparos, e até ali nada a
apontar, tudo correcto, conforme e dentro do horário previsto... destoando, só
mesmo o rosnar contido do cão rafeiro acorrentado no alpendre, logo de mãos
atadas, impotente mas “desinsofrido” com tal desusada e maltrapilha invasão,
com tão desabusada alteração dos interditos previstos para o quintalão
calcetado à sua guarda, para o que está devidamente instruído e “mandatado”...
mas lá está! um pormenor que a todos escapou e, uma vez mais, o imponderável emperrando
a engrenagem do pacífico e natural desenrolar da história: é que ninguém ainda sabe,
nem o próprio Pirum Cego o sabe, que se lhe vai destravar a língua − logo que, inadvertidamente,
nenhuma “providência cautelar” para línguas destravadas, tenha sido tomada…
Pigarreia Pirum Cego, afinando a garganta (“meu cantor”!) e como que pesaroso, quase
lacrimejante de humilhação mas encurtando razões, ataca a ladainha protocolar: “Muito
obrigado patrão Anacleto, em nome de todos e no meu tameim, somos pobres e o patrão
Anacleto lembrou-se da gente, o patrão Anacleto é amigo dos pobres e pobres é o
que mais tem avondo por aí”… E é então que, para estupor geral, se lhe
destrava, alto e bom som, a pobre e mal agradecida: “Sim, porque se não fosse o
patrão Anacleto e outros CABRÕES como o patrão Anacleto o que seria da gente!”...
Alto e para o baile!... e dizer aqui “estupor geral” é dizer pouco!... reparado
o desaforo, atalhado o motim e devolvidas as calças de cotim, o cobertor de
papa, as ceroulas de nastro (até nem estava nada mal!...) e o que mais houvesse
no rol de Pirum Cego, à gorpelha da criada da crista de onde tinham saído, arrastado
para fora, continuava vociferando, inteiramente em roda livre, a língua
destravada de Pirum Cego, já em braços e
meio despido, arrastado de nalgas no
chão, totalmente fora de si, conta quem viu: “Veste doze velhos vejam lá, mas
quantos é que ele não despe, o cabrão!” A indigência e a provecta idade tê-lo-ão
livrado dos cuidados musculados da “gendarmaria” e da “mansidão” normativa dos
bons costumes… Meia moral da história, se é que estas histórias encerram alguma
moral: mais cotim menos cotim, mais cobertor de papa menos cobertor de papa,
não terá sido por isso que Pirum Cego, o mais letrado dos velhos tirados à
sorte, terá tido um inverno menos agasalhado… e, quem sabe, terá feito
doutrina!... (Salve, J.M.!)
Casimiro Branco