sábado, 10 de abril de 2010

"CARTAS PARA Q."




Bissau, 6 de Abril de 1971

Q.,

Enfim, em terra. Bissau, porto de Pidgiguiti, onde tudo começou, em Agosto de 1959, com a brutal repressão dos estivadores em luta (reivindicações banais: menos porrada e mais comida). Mortos pelos cinquenta, feridos pela centena, outros, muitos, deportados para S. Tomé, terra habituada a dar guarida a escravos rebeldes. Fomos autorizados a sair. Aproveitei para ir aos correios deixar a carta que te escrevi a bordo (e onde voltarei para enviar esta que agora te escrevo) e para uma primeira visita à cidade. Pequena, desinteressante, pobre, muito pobre. Rica, talvez mesmo muito rica, apenas a ’Casa Gouveia’, do grupo CUF, que monopoliza o comércio externo da ’província’ e obriga os indígenas à cultura do amendoim (mancarra, por aqui chamado), um pouco como os indígenas de aí que obrigados são à cultura do trigo. Um único monumento, a fortaleza da Amura onde se refugia e planeia o estado-maior da tropa. Ruas cheias de gente, paisanos pretos e militares brancos, da guarnição de Bissau, uns, de passagem, outros, num incessante tráfego de e para quartéis mais ou menos remotos espalhados por essa Guiné fora, no teatro de operações, em linguagem militar um pouco sofisticada.
Pessoas que se cruzam comigo, de olhar triste que me lançam de soslaio, passo lento, dengoso, sem esperança - desbussoladas, rendidas, vencidas. Muitas, passam o tempo a tentar arpoar esmolas, tantas que a cidade parece uma imensa esmolaria. A minha farda, de verde ainda não amarelecido pelo sol africano, com galões de alferes ainda brilhantes, a cheirar a Lisboa e a dinheiro fresco, faz de chamariz. Não me largam: ‘alfero, dá cinco pesos’.
Cafés e esplanadas cheias de soldados que bebem cerveja e comem sem requinte ostras pelo preço dos metropolitanos amendoins, despejando as cascas em baldes colocados ao lado das mesas, e falam alto, muito alto de batalhas reais e imaginadas, mas todas com muita pólvora: tiros de espingardas, metralhadoras, canhões sem recuo, morteiros. Muitos mortos (pretos), muitos heróis (brancos). Realidade e ficção misturadas em desabafos necessários. Aproveitam também para engraxar as botas. Têm, finalmente, alguém que o faça por eles: engraxadores africanos que enxameiam a cidade a oferecer os seus serviços ao preço da uva mijona. Cerveja, ostras, bota luzidia - vida de luxo ou a ele parecida, pelo menos por uma vez. Com papas e bolos se enganam os tolos (ditado esquecido).
O calor e a humidade sufocam-me. Tento afogá-los em Coca-colas, muitas e frescas, primeiro, mas depois de começar a sentir um nervoso miudinho, efeito do excesso de cafeína, mudo para as Fantas, também muitas e frescas. O suor encharca-me a camisa e as cuecas. Logo que o sol começa a baixar, as melgas, aos milhões, iniciam trabalhos: picam em todos os centímetros de pele desprotegida e, mesmo, por cima da camisa e das calças. Tive de me refugiar num restaurante com ar condicionado, o ’Pelicano’, junto do porto, onde jantei e de onde te escrevo.
No fim do jantar, o chefe de mesa aproximou-se e logo declinou nome, nacionalidade, etnia: «Mário, guineense e balanta» e depois de breves perguntas protocolares: «estava bom o jantar?» «deseja mais alguma coisa?», logo, e com inesperada naturalidade, entrou em improváveis confidências: passado de militante do PAIGC, preso na esquadra de Bissau, ilha das Galinhas, Tarrafal, tudo somado onze anos de prisão. Ouvi em silêncio, por prudência. Confissões destas não se fazem com tanta facilidade e logo ao primeiro contacto.
Amanhã seremos baldeados do ’Niassa’ directamente para duas lanchas de desembarque da Marinha e rumaremos para Bolama, onde vamos ficar durante um mês em instrução de aperfeiçoamento operacional, treino final para uma guerra a sério cada vez mais próxima.


Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.

Beijos (muitos) do

P.
.
Do livro (inédito) "CARTAS PARA Q."