quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

UM IMENSO ADEUS


TEMPO DE RESISTÊNCIA
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VARELA GOMES
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(LER EDITORA)
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«Recordo os oito dias do Hospital de Beja através da névoa de um sonho captado a lampejos.
Estava entubado pelo nariz até ao estômago, tinha os intestinos de fora, um dreno de grosso calibre no flanco, os tornozelos ao alto para admissão de plasma e soro, mais soro pelos braços. Vejo-me rodeado de aparelhagem, pessoal clínico, pides e genherres, um deles postado aos pés da cama de capacete e arma aperrada como se eu me pudesse evaporar de um momento para o outro.
O Vilar morria na cama ao lado uma expressão de profunda paz no rosto, com as mãos agarradas às de uma jovem auxiliar de enfermagem, Mariana, de nome alentejano que não mais esqueci.
Do «écran» ao fundo, galeria ou corredor envidraçado, baionetas e batas, figuras trotando a olhar de soslaio, sai um pássaro negro, um padre, que avança sobre mim. Não sei como, consegui reunir energia e lucidez para reagir ironicamente. Levanto o indicador, balanço-o por cima do peito em sinal de recusa, ao mesmo tempo que digo: «Sou budista». O resultado foi milagroso. Parecia uma cena de exorcismo medieval, com o diabo (neste caso o padre) fugindo aos saltos pela direita alta do «écran», como se lhe tivessem pegado fogo ao rabo. E por lá desapareceu aos gritos: «comunista, comunista é o que o senhor é», acrescentados de uns tantos desaforos, cujos termos me passaram da memória, mas que lembro me terem provocado o comentário: «Que vergonha! Um padre que vem insultar pessoas a morrer.»
Ainda hoje evoco o compartimento para onde eu e o Vilar tínhamos sido atirados como uma espécie de câmara mortuária. E talvez fosse essa exactamente a intenção, considerando o género de tratamento que me fora facultado quando dei entrada no hospital, altas horas da manhã.
O médico que apareceu limitou-se a desinfectar os rasgões de entrada e saída das balas, a cobri-los com adesivo e a despachar-me para a dita câmara. E só aí não me finei devido à acção do chefe da equipa cirúrgica enviada de Lisboa, para reforço da cobertura hospitalar da cidade.»
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