sexta-feira, 14 de junho de 2024

PERFIL BREVE DO REI DA CHOLDRA

 


André Ventura é demasiado esperto para acreditar no que diz, o que o torna pior do que se o fizesse – faz dele puro mal, maquiavélico, um homem capaz de cavar onde puder só para meter ao bolso, de manipular o que conseguir só para deixar alguém à nora, de mentir só para lavar a cara, de mentir de novo, sujando-a outra vez, e de fazer da verdade um mero inconveniente, um jogo, um artifício. Ventura é personagem que parece pertencer à ficção – o discurso é uma hipótese, testa-o a ver se dá, e quando A não funciona mete-se por B. Enquanto figura política, é quase inimputável. O seu eleitorado é coisa sem exigência, e ele é o pantomineiro capaz de gritar mais do que os outros – durante mais tempo, com mais histeria, com mais drama. Se é apanhado a mentir, diz-se perseguido. Se é questionado, diz-se esmiuçado. Os outros são todos uns gatunos em busca de o tramar, e ele o coitadinho a lutar contra as injustiças. Enquanto ataca imigrantes, mulheres, homossexuais, transexuais, pobres, pretos, ciganos ou se mete pelo caminho indigno de simplesmente escolher como inimigo público quem não consegue defender-se, faz-se de vítima dia e noite. Se o acusam disto e daquilo – quando ele é, realmente, aquilo e isto –, é um ai-jesus do homem contestado, posto em causa, pequenino para tanto ego, pequenino para o barulho que faz: quem o contesta, diz ele, quer calá-lo; quem o contesta quer limitar-lhe a liberdade de expressão, essa que ele instrumentaliza para baixar o nível da política e da decência em simultâneo.

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 A comunicação social levou-o ao colo. Ventura, nisto, é uma espécie de José Castelo Branco – sabe-se que vai dar cliques, dizer a coisa bizarra, e por isso o escrutínio a sério ficou à margem, e o confronto mais ainda. Quando a comunicação social se apercebeu do que por todo o lado se avisava, já não havia nada a fazer. Sim, veio a confrontar Ventura nas últimas eleições, mas o mal já estava feito, a figura já nos entrava nas casas e nos jornais, e o líder do Chega já só queria uma plataforma. Nesta altura, nem escrutinar parecia valer a pena – se era apanhado a mentir, Ventura chorava nas televisões e na Internet a dizer que era injustiçado, incompreendido, a sempiterna vítima das teorias da conspiração. Vários jornalistas, ainda assim, compilavam as incongruências e as mentiras, assim como os absurdos do seu programa eleitoral – de nada valia, o líder do Chega só chorava outra vez. Para isto, muito ajudou a pouca-vergonha do modelo do comentariado, atribuindo notas numéricas a prestações em debates, encarando-as mais como performance do que como proposta ou coerência e favorecendo quem dava espaço ao circo. Com o seu estilo evidentemente mediático, Ventura ia primando pela sua eficácia – a eficácia de falar por cima, de dar espaço à gritaria, de falar de uma coisa quando o assunto era outro. E preparando as respostas como quem prepara vídeos curtos que possam dar cliques nos seus canais próprios de divulgação, esses que não obedecem nem a códigos deontológicos nem aos mínimos da seriedade ou da higiene intelectual, quanto mais da elevação.
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E não só o Chega tem entre os seus condenados por violência doméstica (alô, Pedro Alves, cabeça-de-lista por Aveiro) ou por discurso racista (alô, André Ventura) ou por mentir (alô, Pedro Frazão, deputado à Assembleia da República) ou por burla ao SNS (alô, Eduardo Miranda, candidato do Chega por Vila Real nas últimas legislativas) ou por extorsão (alô, João Gomes, membro da assembleia municipal de Braga) ou por matar a tiro uma criança de 13 anos (alô, Hugo Ernano, cabeça-de-lista pelo Porto em 2019) ou, imagine-se, por roubo de esmolas e assaltos (alô, João Silva, candidato por Castelo Branco até se saber disto), como é incapaz de apontar o dedo ao óbvio: vinda de imigrantes ou de nativos portugueses, a violência doméstica, o assédio, a violação, costumam vir das mãos de um homem. Se André Ventura estivesse disposto a combater a insegurança das mulheres ou a criminalidade, teria, no seu discurso, de ter a hombridade – a decência, a cabecinha – de se perguntar por que raio é que aos homens tudo parece permitido. Ele incluído, ou ele em primeiro lugar, uma vez que parece viver na redoma do homem branco medíocre – não tem sequer de responder por si, faz-se tábua rasa das suas intenções, pela sua voz grossa nem sequer é questionado. Pelo meio, lá vai guinchando o que pode, sempre à homem forte, à Schwarzenegger sem bíceps, levando o Chega às costas como leva marionetas que lhe dizem amém a tudo, e canalizando desavergonhadamente o descontentamento com a vida – o salário, a saúde ou mesmo a pequenez do ego – para um resultado eleitoral dependente de uma boa performance. Passados uns dias, já esta dependência parece cocaína e Ventura acelera e grita mais para manter o mesmo estilo.

Ana Bárbara Pedrosa
Sábado