terça-feira, 24 de dezembro de 2019

BOAS FESTAS E BOAS LEITURAS

Balada do ornitorrinco

(Extracto)

Imagina escárnios na desatenção com que a natureza o rodeia e por isso se envergonha dos ovos que põe. Guarda-os no lodo, junto da água. Ser anfíbio, que no reino animal costuma ser uma virtualidade e um trunfo, é nele mais uma negligente incongruência da criação. Há, nos seus olhos algo tontos, um desnorte sem pressas e uma inquietação sem alarme. Parece que o tempo o resignou a que a sua conceção original foi um equívoco e a que a sua vocação natural só pode ser entendida além de um labirinto intransponível. Sabe-se presa fácil de predadores e despreza-se tanto que respeita os vermes que come.

Tem a morfologia de um texugo ainda mais acachapado e roçam-lhe o ventre as ervas mais ralas da borda de água. O bico, mais largo e espalmado do que o de um pato, foi-lhe implantado no focinho como se fosse um enxer­to experimental. O corpo coberto de pelos culmina numa cloaca humilhante. Nas suas veias corre um sangue frio sem maldade, feito só do desânimo. A estrutura óssea tem elementos próprios dos répteis despropositadamente encaixados num sistema de mamífero.
(...)
Mas não reinou muito o Ornitorrinco. Começou a corroer-lhe o poder o ceticismo; depois foi o espanto; enfim a indignação. Falava pouco e rouco, quando dele se esperava a melodia de um chilreio ou a eloquência de um rugido. Não tinha a macrovisão do alto voo, antes se arrastava como se algemado por varizes. Não se reconheceram os peixes do grande oceano em quem não ia além de lentas gincanas de poças de água. Os mamíferos nunca lhe perdoaram o primeiro ovo.
O carisma cai, não estiola. E a ignomínia é tão unanimista como a gló­ria. Da fúria da multidão, salvou-o o remorso do Criador, que o pôs a viver, agachado e discreto, no que calculou ser o último continente a descobrir.
A Natureza não parou. Retomou o seu curso onde, sem chefe, a dialética dos arbítrios consegue uma razoável harmonia.
Lá longe, o ornitorrinco foi-se apagando como espécie, sem sequer saber chorar.
Tratou a glória por tu. Triunfou mais do que Pompeu. Interpôs-se entre Deus e a Natureza.
Hoje é o último. Resiste ao tempo. E está uma ruína, um destroço, um cavaco.
Nuno Brederode Santos
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