domingo, 28 de maio de 2017

COMPREENDA QUEM QUISER

Christian Rossi ainda deve vender porcelanas pelos mercados da Provença francesa, tem agora 65 anos. Os jornalistas procuram-no, há décadas que é assim, e de vez em quando talvez o encontrem. Talvez na feira de Manosque, com os Alpes ao fundo, talvez em Sète, a do cemitério que olha o Mediterrâneo, talvez no primeiro fim de semana de cada mês na Canebière, no velho porto de Marselha, porque Christian anda por aí, a prova é que os jornalistas sabem que ele faz bricabraque de louça branca.
Mas o certo é que ninguém o fotografou ou lhe arrancou palavras públicas. As últimas que se lhe ouviram, completava ele 21 anos. Nesse tempo era quando se atingia a maioridade, e isso é importante para esta história. Disse Christian aos jornalistas, em 1973: "As recordações que ela me deixou, foi a mim que deixou, não tenho de as contar. Sinto-as. Vivi-as, eu. O resto, as pessoas sabem: era uma pessoa que se chamava Gabrielle Russier. Amávamo-nos, meteram-na na prisão, ela matou--se. É simples."
Depois, silêncio. Quer dizer, o silêncio de um dos protagonistas de assunto geralmente a dois. Porque sobre l"affaire, o assunto, tem havido um belo e triste fascínio - e talvez mais do que isso. O que não deixa de ser natural porque o epílogo, a morte de Gabrielle, aconteceu no mês seguinte, setembro de 1969, a um homem ter dado, pela primeira vez, um pequeno passo sobre a Lua.
Em maio de 1968 a França era só imaginação, e procurava a praia sob as pedras da calçada. Nas manifestações de 68, Gabrielle Russier e Christian Rossi encontraram o facto de se amarem. Não foi coisa muito comum: ela tinha 32 anos, era professora de Francês num liceu de Marselha e ele, de 17 anos, era seu aluno. Em muitas escolas os professores passaram do estrado altaneiro para uma secretária no meio da sala e dos alunos. Eram dias de querer mudar tudo e já.
Ela, divorciada e mãe de duas filhas; ele, a viver com os pais. Quando ele fugiu para ir viver com ela, os pais dele levaram-na a tribunal. De todas estas informações, marcou uma: ele ser menor. Condenada a uma pequena pena, que foi amnistiada pela eleição do presidente Georges Pompidou, Gabrielle - a foto que conheço dela, sentada num banco de jardim, frágil e cabelos curtos - foi convocada para novo julgamento. Não aguentou, abriu o gás e matou-se.
O pastor protestante Michel Viot, também ele jovem, de 25 anos, citou o profeta Isaías quando o caixão de Gabrielle baixou à terra, no cemitério parisiense de Père Lachaise, em Paris: "Juízes humanos, face a Deus, vocês perderam o vosso processo." Estive a fazer contas, por esses dias eu estava a chegar a Paris e não me lembro da notícia. Lia muitos jornais mas nesse tempo, eu, tolo, não lia os faits divers. Se calhar eu era um dos que Serge Reggiani interpelava em Gabrielle, uma canção que logo surgiu: "Quem estendeu a mão a Gabrielle?/ Quando os lobos se atiraram a ela..."
E, no entanto, eu poderia ter entendido Christian. Um pouco mais novo do que ele, amei arrebatadamente Annie Girardot, uma das mulheres da minha vida. Trintona, Girardot nunca soube de nada, mas ela iria ser a única mulher de lábios finos que eu amei. Tudo por causa dos seus olhos que riam e da voz grave... Vejam a coincidência: em 1971, o realizador André Cayatte convidou Annie Girardot para fazer de Gabrielle Russier. Ao filme, chamou-lhe, belamente, Mourir d"Aimer, Morrer de Amar... Um bom filme de Cayatte, mas sobretudo uma interpretação soberba daquela que continuava a mostrar ao mundo, talvez a fingir, que eu lhe era indiferente. Depois, mas logo a seguir, Charles Aznavour, esse interminável que ainda há pouco nos visitou, fez uma bela canção, melhor do que a de Reggiani, sobre Gabrielle e também lhe chamou Mourir d"Aimer.
Extraordinário fait divers, que provocava tanta vontade de representação. E ainda não referi o episódio admirável de uma... conferência de imprensa presidencial. Pompidou tinha sido eleito em junho de 1969, depois da demissão do De Gaulle. Ele tinha sido primeiro-ministro do general, viera do Banco Rothschild mas era um intelectual, amigo de Senghor e de Aimé Césaire. Em setembro, numa conferência de imprensa, e esta já dada como terminada, um jornalista levantou-se e pediu desculpa por introduzir um fait divers. Perguntou ao presidente o que pensava ele do suicídio da professora de Marselha, acontecido dias antes.
É um grande momento de França. Pompidou estava sentado numa escrivaninha, só, frente aos jornalistas. Tinha os dedos entrelaçados, cotovelos pousados sobre o tampo. Mastigou em seco, moveu os dedos. Disse, enfim, que não ia dizer o que pensou. Fez longa pausa, tirou os cotovelos do tampo, inclinou-se mas continuou com as mãos amarradas uma na outra. E disse: "Compreenda quem quiser." É o título de um poema de Paul Éluard, o que provavelmente ninguém ainda dera por isso. E declamou: "Eu, os meus remorsos foram/ A vítima conformada/ Com o olhar de criança perdida/ Essa que se assemelha aos mortos/ Que são mortos para serem amados." O presidente levantou--se, disse "é de Éluard", e foi-se embora.
O poema Compreenda Quem Quiser não foi certamente inspirado em Gabrielle Russier - Paul Éluard escreveu-o em 1944. "O poeta da Resistência", como lhe chamou Aragon, passara a Ocupação nazi a fazer versos, na clandestinidade, que seriam lançados pelos caças britânicos sobrevoando a França. Já com a guerra ganha, Éluard lançou aquele grito de compaixão e indignação aos seus compatriotas. Em maio e no verão de 1944, na França libertada, a turba dos valentes da 25.ª hora arrastava para a rua mulheres que tinham dormido com soldados alemães. Vexavam, insultavam e rapavam-lhes os cabelos. Há fotos dessas vítimas conformadas, de olhar de crianças perdidas - longos, insuportáveis, dolorosos testemunhos calados.
Ah, como os faits divers nos ensinam a humildade de não julgarmos... Pense nisso, leitor, quando lhe falarem da professora Brigitte que conheceu e amou o aluno Emmanuel, no liceu.

Ferreira Fernandes
DN