A ascensão da nova ignorância
Nada é mais significativo e deprimente do que ver pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel.
Entre os temas tabu dos nossos dias está a ignorância. Parece que falar da ignorância coloca logo quem o faz numa situação de arrogância intelectual, o que inibe muita gente de a nomear. Mas não há muita razão para se enfiar essa carapuça, tanto mais que o problema é enorme e está agravar-se e a assumir novas formas, socialmente agressivas. Acompanha outro tipo de fenómenos como o populismo, a chamada “pós-verdade”, a circulação indiferenciada de notícias falsas, e, o que é mais grave, a indiferença sobre a sua verificação. Não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família. É, repetindo uma fórmula que já usei, como se de repente se deixasse de ir ao médico, e se passasse a ir ao curandeiro.
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A antiga ignorância era vista como um problema da sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.
O primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de “presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivo de interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam aditivas como a droga.
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Ainda há-de alguém convencer-me que este comportamento lá por usar tecnologias modernas representa uma vantagem e não uma patologia. Faz parte de sociedades em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver. E se olharmos para os produtos de tanta página de Facebook, de tanta mensagem, de tanto comentário não editado, de tanta “opinião” sobre tudo e todos, escritas num português macarrónico e cheio de erros, encontramos fenómenos de acantonamento, de tribalização, de radicalização, de cobardia anónima, de ajustes de contas, de bullying num mundo que tem de ser sempre excitado, assertivo e taxativo. Um dos maiores riscos para o mundo é ter um presidente dos EUA que governa pelo Twitter como um adolescente, com mensagens curtas, sem argumentação, que, para terem efeito, têm de ser excessivas e taxativas.
J. Pacheco Pereira
Público