quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

UM IMENSO ADEUS

TU TENS BELOS OLHOS E TU SABES

A guerra vinha outra vez aí, em 1938 era já amanhã. O Havre foi a primeira cidade em que vi neve, e a primeira vez que vi o Havre só chovia. O Havre é um cais, parte-se ou chega-se, passa-se. Foi lá filmado Quai des Brumes, o cais das brumas. Jean Gabin andava com um cão, era desertor e o cão seguia-o, duas solidões a preto e branco, tudo cinzento. Havia um pintor desesperado: "Quando pinto um nadador, vejo um afogado." Havia um velho desabusado que cobiçava a enteada. As esperanças tinham acabado para a Europa. O filme estava para ser uma parceria franco-alemã, mas os estúdios alemães da UFA acharam-no decadente. Do outro lado do Reno não havia visões pessimistas. Quando o filme foi projetado em Paris, sucesso, colava com o desespero geral. As autoridades militares foram os melhores críticos, quando a guerra chegou, Quai des Brumes foi proibido, desanimava. Amargo, tragédias anunciadas que se cumprem, o pintor suicida-se, o desertor vai ser morto pela polícia. E tem um dos momentos redentores do cinema. Ele não lhe fez pergunta nenhuma. Disse-lhe, chapéu enterrado na cabeça, como só Gabin falava: "T'as d'beaux yeux, tu sais." Tens belos olhos, tu sabes. Não pergunta. É um homem a prender e a prender-se a uma mulher. E ela é uma mulher que julgo que diz (eu tinha os olhos presos nos verdes dela): "Beija-me." Tudo é rouco, tudo tão forte. O cais iluminou-se. Ontem os olhos de Michèle Morgan morreram, aos 96 anos.


Ferreira Fernandes
DN