sábado, 22 de outubro de 2016

APRESENTAÇÃO *



Este livro de Pedro Martins (ou do Pedro Martins, pois somos amigos desde os anos 60 do século XX) assenta na organização de cartas que ele escreveu enquanto esteve na tropa na Guiné, entre 1971 e 1973. “Na tropa” quer aqui dizer em cumprimento do serviço militar obrigatório, que o obrigou a participar como alferes miliciano num teatro de operações dos mais duros que as forças portuguesas (e também africanas, aliás dos dois lados) enfrentaram. São pois cartas de guerra, que escreveu à amada, ou seja à namorada. Entre meados de 1971 e meados de 72, foi mesmo em guerra, com muitas dúvidas sobre se poderia voltar, e nesse caso duvidoso em que condições físicas, psicológicas e morais. Essa experiência violenta ainda é mais dilacerante quando não se vê sentido em tudo aquilo, salvo a vontade de escapar e de rever os seus e o seu mundo. Quando os combates no terreno não são encarados como luta entre bons e maus, à guerra objectiva, com fardamento e armas, soma-se o combate interior, que também não é fácil. Essa é a dimensão trágica. 

 A maior parte dos que estão aqui não terá ainda lido o livro, mas não vou repetir o que escrevi como prefácio, o qual não citou directamente as cartas do Pedro nem recorreu à bibliografia ou aos artigos, depoimentos e entrevistas que historiadores, jornalistas ou participantes publicaram sobre ou em torno desses acontecimentos. O autor não quis a visão de um especialista, que não sou, mas sim o olhar exterior de alguém que conhece e que o conhece. Na época a que se reporta só estive cerca de meia hora na Guiné (em escala para a ilha do Sal, com destino ao quartel-general de Cabo Verde), passei-a no aeroporto e mesmo assim não gostei. Nem do clima, nem da atmosfera, nem de saber genericamente o que ali perto se passava. Era um dos pontos de sofrimento de um país, de uma geração e de muitas famílias (também um primo meu, aluno do liceu de Beja onde conheci o Pedro, tinha morrido lá). 

Já tinha lido livros, geralmente de ficção mas com base em experiências pessoais, ou outros textos sobre as guerras em África, incluindo a da Guiné. Mas não lera nenhum relato como este, e muito menos escrito por alguém que conheço e de lá voltou vivo e reconhecível. 

Entre 1968 e 1973, a relação de forças na Guiné tinha mudado desfavoravelmente para as tropas portuguesas e sobretudo para o Exército. As características do território, embora pouco extenso, tornavam precárias a cobertura “de quadrícula” e as comunicações. O armamento e o equipamento do PAIGC tinham-se desenvolvido e modernizado, com apoio militar de países do Pacto de Varsóvia e com uma retaguarda na vizinha Guiné-Conakri, enquanto a política africana do regime português o isolava cada vez mais internacionalmente e o reequipamento das forças era escasso, com artilharia por vezes obsoleta e com armas individuais que padeciam já de alguma desvantagem relativamente às da guerrilha. Ali, as missões ofensivas reduziam-se a “forças especiais” à disposição do Comando Territorial da Guiné, como os fuzileiros e os comandos. Em Março de 1973, a superioridade da Força Aérea portuguesa passou a ser drasticamente abalada pela entrada em acção de mísseis terra-ar Strella à disposição do PAIGC, começando por abater aviões Fiat G91. Naturalmente, isso tornou ainda mais difícil a actividade do Exército, já reduzida a uma presença defensiva em zonas como a de Empada (nome que parece inventado como a Macondo de García Márquez, mas não é), onde foi escrita uma parte das cartas e onde o autor do que não imaginava vir a ser um livro contava as horas e os minutos. Citando sem aspas mas quase literalmente o volume colectivo ‘Guerra Colonial’ (dir. por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, 2005), um caso único em que o exército da potência colonial combatia em inferioridade de meios com os movimentos de guerrilha. O assassínio de Amílcar Cabral, referido no livro, sinaliza ainda o desfecho de 1973. Os desaires verificados e o previsível desastre maior contribuíram em larga escala para a instabilidade e desagrado dos militares, sobretudo reflectido nos quadros permanentes do Exército, que não queriam uma repetição do “caso da Índia”, e tanto mais quanto Marcello Caetano, após algumas hesitações, mostrara recusar esforços de compromisso político com o PAIGC (e com eventual mediação do presidente Senghor, do Senegal), sugeridos pelo governador da Guiné, general Spínola, perante a gravíssima situação que este descreveu pouco antes de se demitir. Dessa conjuntura emergiu o começo de organização de oficiais superiores e intermédios na origem do "movimento dos capitães" e pouco mais tarde do Movimento das Forças Armadas, que através de vicissitudes e contradições políticas e militares poria fim à ditadura. Omito vários outros dados relevantes, para voltarmos ao livro após esta tentativa de enquadramento. As cartas de guerra (cartas e não aerogramas) do Pedro Martins não falam de um ponto de vista geral e abstracto, não falam em nome de outros, são ao mesmo tempo objectivas e subjectivas (e isto não é aqui contraditório) e não são literárias, são testemunhais. É um legado que ele quer deixar, e faz bem. Não ser o livro “de um escritor” só o reforça. As qualidades da sua observação, da sua memória e da sua escrita mostram que podia ter seguido a via da literatura, mas não quis fazer isso e acho que com razão. O retrato do dia-a-dia (não estão lá evidentemente todos os dias, mas estão alguns dos mais significativos) naqueles ambientes a que podemos ter hoje acesso confortável na cadeira ou no sofá, têm o valor e a autenticidade do documento. Sendo pessoal, documenta o que talvez a maior parte de nós teve a sorte de não sofrer e não pôde, não quis ou não soube escrever. ‘A Inscrição dos Dias’ teve originariamente o título ‘Cartas para Q’ (que permaneceu como subtítulo). Q. como foi dito, era a mulher amada. Mas se pronunciarmos esse Q, serão “cartas para quê”? A isto o próprio livro responde. E é ainda por isso que vale a pena lê-lo, ler este livro intensamente breve.

Este livro, assente na memória de uma situação cuja violência foi mencionada, tem uma notável característica que vemos na linguagem que o autor das cartas utiliza: o humor possível. Um humor ácido, amargo ou mesmo sarcástico, numa conjuntura que não dava vontade de sequer sorrir e que se manifesta em diversas expressões e alusões. Interpreto essa distância irónica como um reflexo da atitude crítica e até de autodefesa mental e intelectual naquele cenário que de outro modo seria quase sempre insuportável. Ao mesmo tempo é uma expressão de revolta interior e de recusa dessa guerra, e da guerra em geral. Que é afinal a recusa, como em várias passagens nos é dito de diferentes maneiras, das mentiras da informação militar e da fraseologia da propaganda oficial. Entre outros aspectos faltaria referir as muitas ligações do autor aos livros e ao mundo do livro, antes de ele mesmo escrever um: como leitor constante de muita coisa, e como editor e difusor. E ao mundo da imprensa como colaborador de várias publicações. Mas disso falará ele melhor quando quiser.

FRANCISCO BELARD (30/9, texto revisto e aumentado a 9/10, 2016)

* Texto lido nas sessões de apresentação do livro "A Inscrição dos Dias - Cartas para Q.", na Biblioteca da Casa do Alentejo, em Lisboa, e na Biblioteca José Saramago, em Beja.