terça-feira, 12 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Empada, 5 de janeiro de 1972

Q.,

Hoje, dia agitado com quebra de rotinas. Visitas inesperadas. Logo de manhã, bem cedo ainda, seis helicópteros a sobrevoar o quartel com pedido de segurança na pista. Lá fomos, como compete, montar a segurança ao Aeroporto Internacional de Empada que é o que chamamos a estes mil metros de terra batida onde aterram helicópteros e avionetas. E os 'hélis', em segurança, lá baixaram. Soubemos, então, que vinham por três horas, o tempo previamente estabelecido para a recolha dos Comandos africanos que tinham largado ali um pouco mais à frente, vinte quilómetros, talvez, para uma operação de 'limpeza' numa aldeia da zona controlada pelo PAIGC. Porrada da grossa pela certa, mas, como diz o povo na sua imensa sabedoria, "Tiro no cu dos outros, como a pimenta, para nós é bálsamo". E desta estamos safos. Aliás, creio que já te disse, a nosso papel aqui, para afirmar a soberania portuguesa (ah, ah, ah!), não passa disto: patrulhamentos, emboscadas, levantamentos de minas, sempre na defensiva, e resistência e resposta aos ataques que são cada vez mais frequentes.

Fomos para a messe beber uns copos e falar de experiências africanas. Lá falámos das nossas rotinas, não vou repetir, eles falaram da vida deles. Que é dura e arriscada: alerta permanente na base de Bissau, protecções ao Spínola, aqui conhecido por Sebastião Baldé, que tem a coragem de visitar os pontos mais perigosos do teatro de guerra (que conste, é o único general que o faz); evacuações de feridos, umas vezes sem pernas, outras, cheios de buracos de balas, alguns com as tripas de fora que cheiram a sangue e a merda; ataques com heli-canhões em missão de socorro aos aflitos cá em baixo, arma poderosa e temida pelas guerrilhas com apontadores exímios que, apesar da trepidação da máquina, metem as 'ameixas' de gordo calibre onde querem e, se o guerrilheiro está à vista, até escolhem a parte do corpo que querem alvejar. E não falham: na cabeça ou no tronco, lá fica mais um morto.

E, três horas passadas, lá fomos levá-los à pista, lá partiram. Partiram eles e chegou um outro helicóptero, este com os despojos da operação: umas caixas com roupas, uma máquina de costura, uma caçadeira, uma outra caixa com objectos diversos onde os meus olhos de lince pousaram sobre quatro livros. Livros, livros! E se fui rápido no olhar, mais rápido fui num movimento de mão. Com uma perícia de fazer inveja ao melhor carteirista do 'Eléctrico 28, o '28' da Carris' surripiei-os, abafei-os dentro da camisa, em movimentos tão rápidos que nem o piloto, nem os soldados que rodeavam o aparelho deram por isso. E foi neste preciso momento que as coisas se podiam ter complicado: Uma 'Dornier' parava ao lado do helicóptero e, lá dentro, um conhecido e bravo tenente-coronel dos Comandos, menino bonito do Sebastião Baldé, comandante da operação, olhava para o ajuntamento com cara de poucos amigos. Só tive tempo de passar os livros ao 'Bife' e dizer-lhe "Desaparece para o quartel e esconde-os no teu armário que depois eu vou ter contigo" (o 'Bife' é soldado do meu pelotão e pessoal de confiança. Nado e criado no Bairro Alto, está habituado ao convívio com os tipógrafos do Diário Popular, Diário de Lisboa, Bola, tudo gente do contra, diz ele). E ainda o 'Bife' não tinha dado mais de uma dúzia de passos e já o tenente-coronel estava ao meu lado, aos berros "Mas quem é o gajo que manda nesta merda?" E eu, sem galões e ainda com a camisa desabotoada, fiz a continência da praxe e disse "Meu tenente-coronel, o gajo que manda nesta merda sou eu" e lá declinei posto e nome. Então, ainda aos berros, disse ele "Mande afastar esses merdas". E eu, obediente e para não levantar suspeitas, voz grossa de comando, como a situação impunha, virei-me para os soldados e comecei também aos berros "Seus merdas, toca a afastar, seus merdas!". Eles não se ofenderam, afastaram-se, não complicaram. Sabíamos todos a merda onde estávamos metidos. O tenente-coronel passou um breve olhar sobre o espólio e mandou os aparelhos levantar voo para Bissau. Respirei de alívio. Uf! os livrinhos já cá cantavam.

E aqui estão eles à minha frente, em cima dos caixotes que, no meu quarto, me fazem de secretária: "Antologia Mayor", Nicolas Guillen, Ediciones Unión, La Habana, 1964; "Le Capital - Cours Élémentaire", Walter Schellenberg, Verlag Zeit Im Bild Dresden; "Textes Philosophiques Choisis", N. Tchernychevski, Moscovo; "O Nosso Livro 2ª Classe", Uppsala. O livro do  Tchernychevski tem uma folha seca a assinalar o ponto de paragem da última leitura. Foi na página 303, com um último sublinhado a lápis na frase: "aujourd'hui encore on a souvent coutume de comparer aux enfants les peuplades étrangères incultes et les classes inférieurs de la nation et d'en conclure que les nations civilisées ont le droit d'obliger les peuples non civilisés qui leur sont soumis à modifier leur mode d'existence".

Aqui estão eles e não sei se me acusam por terem sido roubados a quem tão carinhosamente os tratava ou se me agradecem por tê-los salvo das mãos dos bófias, sargentos ou oficiais, da 'Segunda Repartição' que, depois de um olhar superficial, anotando apenas os locais de edição - Moscovo, Havana, Dresden, Uppsala, tudo santuários dos incréus que nos obrigam à presente cruzada - certamente os mandariam para as latrinas a fim de, folha a folha, e como última função, limparem a trampa que eles andam cá a fazer. Não sei. Em todo o caso, apetecia-me levar para o mato os 'Poemas', do Maiakowski, que trouxe de Lisboa e deixar o livro, aberto, pregado no tronco de um embondeiro, junto a um trilho por onde passamos, nós e eles, à vez, e deixar bem à vista, sublinhado a vermelho: "Eis-me quite contigo. / E é inútil o passar em revista / penas / azares / e recíprocas feridas."

E depois de dia tão agitado, vou tomar a habitual dose cavalar de 'Valium' e 'Mogadan' para conseguir dormir. E, enquanto o sono não vem, lerei Guillen. 
O primeiro poema da 'Antologia', 'La Balada Azul', começa assim: "Frente al mar, viendo las olas / la quieta orilla besar, / los dos muy juntos"...

E pensarei em ti, em nós. 'Los dos muy juntos'.
E beijo-te,

P.