segunda-feira, 11 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Bolama, 12 de maio de 1971


Q.,


Amanhã, partimos de Bolama, ilha sem guerra, onde, em pouco mais de um mês, aboletados no quartel do CIM - Centro de Instrução Militar, na cidade, ou abivacados no mato, num acampamento improvisado e digno da mais miserável trupe de ciganos, estivemos em adaptação ao clima, a castigar o físico em provas de resistência, palmilhando centenas de quilómetros entre capim, mata, enterrando-nos e desenterrando-nos nos pântanos, aqui ditos bolanhas, a aprimorar a arte de bem matar em toda a linha, a afinar pontarias, com granadas defensivas e ofensivas atiradas a dezenas de metros, morteiradas e bazucadas apontadas para alvos lá a centenas de metros, G3 e HK21 em tiro-a-tiro de precisão, ou em rajadas de tiro instintivo disparadas com as armas encostadas à anca. Foi um fartote, nada que se compare ao treino de fogo, na carreira de tiro da serra da Carregueira com balas contadas e sempre com receio de atingir um vizinho. E também treinámos na arte de passar fome: rancho comum e muito variado: arroz com ossos e estilhaços de frango, massa com ossos e estilhaços de carne de vaca, chispes ossudos levemente revestidos a gordura com feijão, ração de combate. Às vezes, para variar, era um pouco diferente: arroz com ossos e estilhaços de carne de vaca, massa com ossos e estilhaços de frango, feijão com chispes ossudos levemente revestidos a gordura, ração de combate. Está formada e  entrou em regime de exploração a sociedade ' 1º Sorja Semedo & Furriel Vagomestre, Restauração, Lda'. O filho-da-puta do capitão pisca-lhes o olho e deixa andar. À minha contestação respondeu, em tom autoritário: "Não se meta em assuntos do rancho". Rancho - assunto secreto, segredo militar. O apuramento dos dividendos a receber fica lá mais para o fim da comissão. Bom, estamos aptos. Um pouco subnutridos, mas aptos para matar. Balas não faltam, granadas também não. Haverá coragem ou necessidade? O tempo e as circunstâncias o dirão.

A ilha de Bolama, como todas as ilhas do mundo, está rodeada por água, neste caso mar, mas só tem uma praia com uma língua de areia onde nos podemos sentar e, mal entramos na água, os pés enterram-se em lama preta e porca, com 'matacanha', um bichinho antipático que gosta de se alojar por baixo das unhas dos pés e causa estragos dolorosos. Por precaução, entramos no mar com as botas de lona calçadas e para um banho breve.

E sobre a cidade de Bolama pouco há a dizer. Desde logo, chamar-lhe 'cidade' já é um acto de boa-vontade e acrescentar que foi capital da 'província' parece um atrevimento, mas foi mesmo verdade. Não é um sítio desagradável: ruas largas, sem trânsito, uma casa de pasto, peões negros, soldados do Centro de Instrução Militar, fuzileiros navais que aqui têm a sua base. Vida calma. Sem guerra nas redondezas - que começa logo ali em frente, em S. João - e sem melgas, um bom livrinho para ler, a tua companhia e seria um aprazível lugar para passar duas ou três semanas de férias.
Mas Bolama tem um monumento raro, senão único no mundo: um monumento fascista mandado erigir por Benito, esse mesmo, o italiano, o Mussolini. O local não foi escolhido por um desses caprichos do Diabo. Foi erigido aqui porque foi aqui que, em 1930, caiu um avião italiano que fazia a viagem Roma-Brasil, em acto de propaganda destinada a mostrar ao mundo mais um esforço fascista de 'paz'. Houve mortos e o Benito -  esse Benito de quem o hortelão de Santa Comba tinha fotografia na secretária de trabalho, no palácio de S. Bento (ou S. Benito), prova de grande admiração, e para a qual olhava enquanto redigia e assinava os decretos do nosso descontentamento - quis homenageá-los. Benito quis, Salazar deixou, a obra fez-se. Com mármore e artistas vindos de Itália ela ali está, imponente, com uma coroa de bronze oferecida pelo Duce, a águia da fábrica de hidro-aviões Savoia, uma coroa com fáscios da Isotta-Fraschini e a coroa de louros da Fiat e com os dizeres:

Crociera Aerea Transatlantica
Roma-Brasile

A. IX E. F. 

Ai Caduti di Bolama
L'Italia

(Cruzeiro Aéreo Transatlântico
Roma- Brasil

Ano IX da Era Fascista

Aos Mortos de Bolama
A Itália)

E se a Itália, em 1945, se deu ao trabalho de derrubar todos os monumentos fascistas, nós por cá, continuando com o Salazar ao leme, mantivemos e conservámos este. E aqui estou eu, em 1971, ano XLV da Era Fascista Portuguesa, a admirá-lo e a dar nota da sua existência. E, agora, se notares a escrita insegura e torta não estranhes. Fui eu que pus a mão esquerda a tapar-me os olhos para esconder a vergonha que sinto e conseguir escrever a frase que segue: O 'Botas' fez bem. Os amigos são para as ocasiões.
Rachelle Mussolini, primeiro, amante, depois, esposa, finalmente, viúva de Benito, emocionada e reconhecida deixou para a História: 'Ammiro veramente i portughesi che non l'hanno distrutto comme è successo qua in itália' (admiro verdadeiramente os portugueses que o não destruiram como aconteceu cá em itália). 

Uma nota final sobre esta estadia em Bolama: Está a descansar aqui no CIM uma companhia de Comandos, em bom rigor: metade de uma companhia de Comandos. A outra metade está espalhada por hospitais (Bissau e Lisboa) e por vários cemitérios do país. Mas os que aqui estão parecem-me animadotes e continuam convencidos que "A sorte protege os audazes". Olha se não protegesse...


 E por aqui me fico. Vou arrumar a bagagem nos sacos de lona para a viagem de amanhã. As lanchas de desembarque da Marinha já ali estão no cais. Esperam-nos.

Un grande bacio,

P.