quarta-feira, 16 de março de 2016

FEBRE DE SÁBADO À TARDE

1973. Tempos difíceis de resistência e luta. Trabalho até à uma hora de sábado, semana inglesa (a semana americana de sábado livre só viria uns meses depois). Os itinerários da esquerda líquida começavam ao almoço, nas tascas do Bairro Alto e acabavam a altas horas no Jamaica do Cais do Sodré. Pelo meio, visitas prolongadas aos balcões do rés-do-chão e primeiro andar da livraria Opinião, a farejar livros proibidos que o Hipólito escondia da bófia e, depois, vendia aos amigos do reviralho. Subida ao segundo andar, bar da Opinião, para uma sessão de digestivos - whiskies, bagaceiras, coisas assim. 
Cálices nas mãos, revoluções nas línguas, um poema neo-realista e subversivo, uma prosa surrealista e ainda mais subversiva, os amanhãs que cantariam e já estavam ali mesmo ao virar da esquina. Sonhos.
Ao virar da esquina, logo ali ao princípio da rua que desce, não estava nenhum amanhã a cantar. Estava uma tasca sem nome, pequenina, com um balcão minúsculo, duas mesas e oito bancos. Vinte e cinco metros quadrados de território livre onde corria o tinto e desaguavam jornalistas do Bairro Alto, ardinas do jornal República, escritores consagrados e candidatos a escritores, artistas plásticos sem galeria, sem fama, sem proveitos, surrealistas tesos, penduras de todo o tipo, copofónicos ortodoxos e dissidentes, malucos avulso e outra fauna pouco recomendável, mas tudo pessoal de esquerda. Aí, na tasca, território livre e 'PIDE free', de tudo se falava sem sombra de pecado nem censura. E todos aproveitavam para emitir opiniões. 
Guerra do Vietnam? Cá vai disto: origem, análise e perspectivas. E todos botavam discurso. Solicitada opinião a Alcambar, velho repórter policial do jornal República, Alcambar, em voz cava modelada pela correnteza de muitos bagaços e ainda mais cigarros sem filtro, breve, sentenciava: "O caralho, pá".
Guerra colonial? E lá vinham os discursos esclarecidos sobre o seu passado, presente e futuro. E o Alcambar, sempre o último a tomar a palavra, rematava: "O caralho, pá".
Médio-oriente, crise do petróleo? Todos especialistas na matéria. E cada um mais especialista do que o orador anterior. E depois o Alcambar: "O caralho, pá".
O fim do fascismo e o advento da democracia? E lá vinham as teses, as antíteses e as sínteses. E o Alcambar para encerrar o assunto: "O caralho, pá".
"O caralho, pá", a propósito de tudo e de nada, foi a única frase que, em tantas tardes e noites de resistência ao fascismo e aos efeitos do álcool, ouvi da boca do Alcambar.
Tantos anos depois, os jornais do Bairro Alto acabaram, a Opinião faliu, o Hipólito  morreu, a tasca fechou, o Jamaica está para fechar. E, dessas tertúlias saudavelmente ingénuas e loucas, quantas vozes restam para atirar aos ventos as imorredoiras palavras de Alcambar "O caralho, pá"?