quarta-feira, 23 de março de 2016

DO INFERNO E DAS SARDINHAS

O padre Brandão até parecia bom homem. Dava missa na Sé, baptizava, casamentava e ainda fazia uns ganchos nas escolas primárias, arregimentando cordeirinhos para o divino rebanho. Falava bem, ou assim me parecia, e mansamente. Do Céu e dos anjinhos falou com tanta ternura que eu, em olhar panorâmico pela sala de aula, já só imaginava aquela malta, no recreio, a correr, a saltar, a futebolar e todos de asinhas nas costas. Mas depois veio o reverso da medalha, como é uso dizer-se. Veio o Inferno com seus pecadores e seus caldeirões de azeite a ferver. Um horror. Olhei para o Sardinha (o Sardinha, mais velho, mas presente na sala por ser repetente contumaz, era o meu ídolo por ser o melhor no jogo da bola. Aliás, anos depois, graças ao seu fabuloso pé esquerdo, chegaria a back da selecção nacional de futebol com um nome artístico terminado em 'inho', fruto da sua admiração por um médio brasileiro que jogava no Sporting, nosso íntimo dos cromos da bola e que o Artur Agostinho, na rádio, elogiava muito. Mas por aquele tempo, o Sardinha alinhava no grupo dos 'atrasados' e sentava-se na última fila de carteiras). Olhei para o Sardinha e imaginei-o mergulhado num caldeirão de azeite a ferver. Sim, porque com tão fraco aproveitamento escolar, o Sardinha só poderia ir parar ao Inferno. Poderia ir? De acordo com as condições necessárias para lá se entrar, muito bem explicadinhas pelo padre Brandão, ia de certeza absoluta! Fiquei comovido e angustiado. Só via o azeite a ferver e o Sardinha (o meu ídolo!) lá dentro a gritar.
Cheguei a casa tão angustiado e tão comovido ainda que, antes do beijo da praxe, disse logo à minha mãe, num tom pungente e, simultaneamente, imperativo: "Mãe, nunca mais quero comer sardinhas fritas!"