sexta-feira, 18 de março de 2016

AVENTURAS E DESVENTURAS DE UM LEITOR ESQUISITO



O senhor Barata, livreiro de longo passado e maior prestígio, tinha acabado de realizar o sonho da sua vida: oferecer à cidade de Lisboa, aos seus habitantes e visitantes uma livraria ampla, bem iluminada, bonita, funcional, moderna, complementada com uma galeria de exposições. Gastou tudo o que tinha e, provavelmente, o que não tinha, mas a nova Livraria Barata abriu portas na Avenida de Roma. Um luxo para os livros e para os amantes de livros.
Trabalhava, então, para aquelas bandas e a 'Barata', à hora de almoço ou ao fim da tarde, passou a ser para mim local de paragem obrigatória.

Mas o senhor Barata, António Barata,  também cometeu um erro trágico: contratou três flausinas para ajudantes do senhor Afonso, velho colaborador da casa e conhecedor do mundo dos livros, e esqueceu-se que as raparigas, bonitas e portadoras de saias generosamente minis, precisavam de formação numa área que, de todo, não conheciam. Assim, as pequenas estavam ali a vender livros e revistas com o mesmo 'savoir faire' com que, num supermercado, venderiam margarinas e pensos higiénicos.
Vou contar para que se não pense que exagero: certo dia, livraria cheia de compradores e passeantes, pedi à miúda que me ajudasse a localizar o livro "A Angústia do Guarda-redes Antes do Penalty", do Peter Handke. Riu com gosto, quase à gargalhada, e contou à colega o desplante do meu pedido. Riram as duas. De repente, uma gritou para o fundo da sala: "Oh Afonso, este senhor quer "A Angústia do Guarda-redes Antes do Penalty". Toda a gente a olhar para mim, enquanto o Afonso gritava: "Está nessa prateleira da direita". Saí com o livro na mão, mas um pouco incomodado.
Tempos depois, voltei a solicitar os bons ofícios de uma das pequenas. Disse-lhe: "Quero dois livros, mas preciso que me ajude a localizá-los". "Um de cada vez", pediu-me. E eu disse: "A Pornografia", do Witold Gombrowicz. Fez um sorriso malandreco como se estivesse a falar com um taradão, baixou a voz e confidenciou-me: "Esse, não sei se temos, mas ali naquela estante do canto temos muitos livros pornográficos" e, sem intervalo, disparou aos gritos: "Oh Afonso, este senhor quer "A Pornografia". O livro lá apareceu, mas pelos olhares da clientela, senti que não era tido como um leitor muito sofisticado. Preparei-me para pagar e sair dali depressa. Então, a flausina interpelou-me: "Disse que queria dois livros, qual é o outro?". "Agora estou com pressa. Levo depois", respondi, mentindo.

É que o outro livro que eu queria era do Aragon, tinha sido lançado pela "&ETC" e chamava-se "A Cona de Irene". Agora imaginem a cena: eu ali especado junto ao balcão, a livraria cheia de gente respeitável e a rapariga aos berros: "Oh Afonso, este senhor quer "A Cona de Irene". Porra...