quinta-feira, 31 de março de 2016

CARTAS PARA Q.

Uíge, Rio Tejo, 31 de Março de 1973

Q.,

O 'Uíge' veio em marcha lenta, poucos nós à hora, desde a foz do rio Geba, por entre vagas da altura da torre de menagem do castelo de Beja. Bom, talvez seja exagero de alentejano, talvez as ondas fossem só da altura das ameias do castelo de Beja ou ligeiramente mais altas. Concedo. Mas eram altas e metiam medo. E, pior, obrigaram a mais dois dias de viagem, a mais dois dias de suplício, a mais dois dias sem nos vermos livres desta farda verdosa, viscosa, merdosa. 
E, chegados ao Tejo de águas mansas, o 'Uíge' continua lento a subir o rio, agora por precaução. Há por aí baixios , trânsitos diversos - fragatas, canoas, petroleiros, batelões, rebocadores, 'cacilheiros' da Trafaria, paquetes cheios de camones. 
Já se vê gente no cais de Alcântara - familiares, amigos, amigas, namoradas, madrinhas de guerra para recepção calorosa e emocionada; polícias militares para manter a ordem e impor respeitinho aos taratas; polícias de segurança pública para manter a ordem e impor respeitinho aos paisanos, regular o trânsito; e os outros, os da 'Defesa do Estado', que aparecem em todos os ajuntamentos com mais de duas pessoas - e nunca mais chega a hora da atracagem. A bordo, nos conveses, as gargantas do pessoal têm tráfego nos dois sentidos: de fora para dentro passa o álcool, de dentro para fora passa a letra da canção da Amália gritada sem afinação nem descanso: "Um cravo numa água furtada / Cheira bem, cheira a Lisboa / Uma rosa a florir na tapada / Cheira bem, cheira a Lisboa ". Sãos e salvos, celebram o regresso. Digo sãos e salvos? Talvez outro exagero. Salvos, sim, mas sãos nem todos, vê-se à vista desarmada: magros, envelhecidos, amarelos, entranhas como sucatas, heranças de dietas porcinas, águas podres, vendas de sangue assíduas e sem controlo, a quinhentos pesos (uns cobres extra para sandes, cervejas, putas), paludismos, hepatites, venéreos. Mais os apanhados pelo clima, malucos encartados para todos os gostos e alguns com difícil conserto.
Chegam as ordens para a operação de desembarque: não há desfile (o que é lamentável, perde-se um hilariante espectáculo: os 'heróis do Ultramar' a marcharem de passo trocado, às curvas e aos tropeções, boa imagem de um país e de um regime em estado de tem-te-não-caias). Só uns beijos decentes e uns abraços breves. Depois, toca para as 'Berliets' e é rumar ao '1 de Infantaria', na Amadora, para espólio final e só depois a desenfreada corrida para os braços da 'Peluda', sendo que a 'Peluda', em terminologia de magalagem, não é uma namorada ou uma madrinha de guerra alérgica a depilações ou orgulhosa da sua farta pentelheira, mas tão-só e simplesmente a vida civil, a vidinha civil.
Mas o 'Uíge' traz mais passageiros, no último porão, quase clandestinos: os mortos.  A alguns deles, em nome da Pátria reconhecida e nas minhas funções de 'oficial cangalheiro', prestei honras militares, em Bissau. Viajaram no último porão e aí ficarão até de madrugada. 'Honrai a Pátria e a Pátria vos contempla', disseram-lhes num dia já longínquo. Honraram a Pátria e a Pátria os contemplou com chumbo e pinho e, num caso ou noutro, com uma cruz de guerra com palma, por feitos em combate, a título póstumo, entregue num 10 de junho, dia da Raça lhe chamam, no Terreiro do Paço, a pai ou parente chegado, choroso e de fato preto. Desembarcarão sem pompa nem circunstância, a coberto do escuro da noite, e seguirão para cidades, vilas e aldeias remotas, espalhadas um pouco por todo o país. E quem sabe se aí, durante os funerais, aparecerá alguém a cantar baixinho, muito baixinho, como quem reza: "Tejo que levas as águas / Correndo de par em par / Lava a cidade de mágoas / Leva as mágoas para o mar. // Lava-a de crimes, espantos / De roubos, fomes, terror / Lava a cidade de quantos / Do ódio fingem amor"...

FIM.

Até já, Querida.
P.