terça-feira, 22 de março de 2016

CARTAS PARA Q.

Bissau, 27 de Setembro de 1971

Q., 

Depois de saber a notícia e de desligar o telefone, vim para aqui, para a esplanada do 'Bento'. Cheia, como sempre, de tropa, de cervejas. Barulhenta: gritos, arrotos, peidos, cascas de ostras, aqui tão baratas como os tremoços ou a mancarra, a tilintar nos baldes, uma ou outra garrafa a partir, vernáculo, sons a imitar explosões puum!, puum!, outros sons vadios de raça indefinida, o diabo.
Não conheço ninguém, não posso partilhar a alegria da boa nova. Gozo-a sozinho e assobio uma moda da minha terra, a "Que Inveja Tens Tu das Rosas". E bebo gins. Já lá vão seis. Começo a sentir-me leve e solto. Os da mesa do lado olham para mim um pouco intrigados pelo assobio e pelos copos e garrafas de 'tónica' que se vão acumulando na minha mesa. Pensarão que, como tantos outros, já estou 'apanhado pelo clima'. Penso as frases com intervalos longos e escrevo-as lentamente, por dificuldade de concentração. Será da emoção, mas os gins também ajudam, certamente.
Um puto quer engraxar-me os sapatos. Digo que sim e dou-lhe cinquenta pesos, uma fortuna para ele. E continuo a assobiar.
Peço mais um gin, o último para o caminho até ao Quartel-General, onde estou bivacado em zona para pessoal em trânsito e conhecida por Biafra. Bebo-o depressa e levanto-me. Os da mesa do lado continuam a olhar. Viro-me para eles e digo: "É uma menina" e, baixinho, quase em sussurro, desato a cantar "Que inveja tens tu das rosas / Se és linda como elas são".
Parto. Sinto que os meus pés entraram em contencioso com as rectas. Que se lixe: vou às curvas, mas sempre a cantar, baixinho, quase em sussurro, só para mim: "Que inveja tens tu das rosas / Se és linda como elas são"...

Beijos,
P.