quinta-feira, 24 de março de 2016

CARTAS PARA Q.

Empada, 4 de Fevereiro de 1972

Q.,

"J'avais vingt ans et je ne laisserai personne dire que c'est le plus bel âge de la vie." Andava triste o Paul Nizan. Tinha vinte anos e andava triste. Teve a elegância de morrer cedo, como diria, poucos anos depois, o seu grande amigo Jean-Paul Sartre. Foi durante a guerra, uma bala perdida, uma daquelas balas perdidas que sempre aparecem em todas as guerras e que encontram abrigo num corpo que passa.
Tenho vinte e três anos, estou na guerra e triste. E também não permitirei que ninguém diga que estes são os mais belos anos da minha vida. Talvez por isso me tenha lembrado do Paul Nizan. Por isso, e porque aqui a coisa está perigosa. Circulam balas perdidas (e achadas), estilhaços de granadas de RPG, morteiros, canhões, mísseis terra-terra. Ninguém está livre de um encontro fatal com um desses bocados de aço esvoaçantes e de uma morte sem elegância.
Ontem, o PAIGC queria festejar mais um aniversário do início da guerra colonial com um programa de grande 'ronco' (ronco, no dizer destes gentios da Guiné, é alarido). Para bombo foi escolhido o 'campo fortificado de Empada', designação que empregam para identificar o quartel, a aldeia adjacente cercada de arame farpado e os nossos postos avançados, lusa cópia das aldeias estratégicas do Vietnam.
Houve festival, mas o programa teve alterações de última hora. Um bi-grupo de infantaria IN, abreviatura de inimigo para facilitar a redacção de relatórios, que tinha por missão o assalto ao quartel caiu numa emboscada das NT (nossas tropas, em linguagem de amanuense) que, em acção defensiva, se tinham instalado a menos de mil metros do quartel, bem abrigadas e armadas até aos dentes. Por volta das sete, já noite caída, estava eu no quartel com dois pelotões em prontidão para o que desse e viesse, começou o fogachal: G3, morteiros, bazucas, dilagramas, de um lado; Rpg(s), granadas, Kalashnikoves, do outro. Vinte minutos de inferno e, depois, silêncio e retiradas. 
Os nossos chegaram todos, dois deles feridos. Ferimentos ligeiros, ao que parece, uns estilhaços de granada nas pernas. Foram hoje evacuados para Bissau. Os médicos do hospital militar dirão o que se passa.
Mas o momento alto da festa ainda estava para vir e com largo e demorado foguetório: lá pelas dez, uma tempestade de aço sobre o quartel - canhoadas com fartura (centenas!) enviadas de várias bases e com pontaria de peritos, mísseis q.b. - quatro - que a vida está cara e o material, por pesado, é de difícil transporte. Quatro tremores de terra (escala 5 de Richter, talvez) foi o efeito, acompanhados de quatro rajadas de vento ciclónico.
Mais quarenta minutos de inferno, ou talvez pior, porque, pelo que tenho ouvido, o inferno será tão quente como a Guiné, mas com menos humidade, menos melgas, menos ruído e menos aço voador. Enfim, passou. Abrigados nas valas ou protegidos nos espaldões dos morteiros e do óbus que também mostravam serviço, safámo-nos todos com vida e com poucos arranhões. Obra da Nossa Senhora de Fátima, pela certa. Menos sorte teve um velho biafada que fui socorrer na tabanca: morto, morto, morto. Uma granada de canhão deixou-lhe o corpo tão furado como um barril de cerveja, em noite de cavalos aos tiros e pistolas aos coices, num bar do Far-West.
E esta manhã, pelo nascer do sol, lá fui comandar a tropa para o reconhecimento do local da emboscada. Surpresa, grande surpresa: um guerrilheiro morto com um tiro na testa, boca e olhos abertos como se revelassem espanto pela nossa chegada, dois feridos com as pernas cheias de estilhaços dos dilagramas. Um deles, ainda de pistola em punho, rendeu-se quando viu noventa G3 apontadas. Ainda bem. Evitou-se um fuzilamento sumário. Improvisámos macas com troncos de árvores para o seu transporte e lá regressámos ao quartel. O morto foi depois enterrado junto da pista de aviação e os feridos seguiram para o Hospital de Bissau, fazendo companhia aos 'nossos' feridos.
À hora de almoço, o cabo cripto trouxe à messe de oficiais uma mensagem de Bissau: o Quintino Gomes, comissário político do PAIGC e homem muito influente em toda a zona libertada do sul da Guiné, morreu na emboscada. 

Q.,

Agora em francês, para dar a tudo isto um ar menos incivilizado: J'ai vingt-trois ans et je ne laisserai personne dire que c'est le plus bel âge de la vie.
Dá para perceber?

Beijos,
P.