domingo, 30 de agosto de 2015

DE OUTROS

Em “1984”, de George Orwell, o contexto é político e a língua, ou a novilíngua em construção, atira-se aos significados, subvertendo-os, e ao léxico, reduzindo-o. O objetivo é moldar o pensamento (e a realidade) a uma grelha de sentido unívoco, libertando-o de escolhas polissémicas. Já muitos se referiram ao modo como hoje em dia o empobrecimento vocabular, a literalidade interpretativa ou os modismos redutores sugerem uma espécie de novilíngua insidiosa, e contagiosa, que vai tentando adequar o real a um modelo único e conformista. O desaparecimento de palavras como ‘patrão’ ou ‘trabalhador’, o novo significado, por exemplo, de ‘trabalho não remunerado’, que passou a ‘oportunidade’, o termo ‘mercados’, que é dito e escrito à exaustão sem que ninguém saiba com rigor o que significa, os ‘doentes’, que passaram a ‘utentes’, quando não a ‘clientes’, o ‘empobrecimento’, que passou a ‘ajustamento’… E, se quisermos continuar com Orwell e avançar até ao doublethink, que melhores vocábulos do que ‘parcerias público-privadas’, em que os riscos ficam por conta do público e os lucros são privados, ou ‘dívida soberana’, uma contradição óbvia nos termos? Estamos muito longe do mundo real a que se referia Feynman, antes atolados no delírio humano puro e duro. Um exemplo esclarecedor de manipulação da linguagem está a acontecer agora, neste preciso momento, na Europa, 2015. Pois eis senão quando aos que atravessam o Mediterrâneo para o lado de cá (aquele de onde escrevo) se deixou de chamar ‘refugiados’ e se passou a chamar ‘migrantes’.
Ana Cristina Leonardo
Expresso