segunda-feira, 15 de setembro de 2014

GOLPE DE MÃO


Não posso precisar a data da ocorrência. Foi no final do longínquo ano de 1971 ou no igualmente longínquo início de 1972. Um preciosismo sem importância porque, em qualquer caso,  já decorreu o prazo de prescrição. Sim, digo bem 'prazo de prescrição' por se ter tratado de crime de furto. E, por uma vez na vida, cometido por mim. Com orgulho o digo pelas razões que passo a expor:
Era a guerra e no meio da zona libertada da Guiné se encontrava o quartel ou campo fortificado de Empada. Casernas, metralhadoras pesadas, morteiros, obuses, valas e abrigos de protecção, uma pista de terra batida para helicópteros e avionetas, tudo cercado por pântanos, tufos de matas, hienas, cobras, melgas e guerrilheiros do PAIGC. 
Naquela manhã, inopinadamente, baixaram seis helicópteros. Tinham largado os comandos africanos para varrer uma aldeia que servia de base de apoio ao IN (abreviatura casernícola de inimigo) e faziam tempo para a sua recolha na hora e local previamente acordados. Para não baralhar os paisanos que nunca se viram nestes assados, convém esclarecer que, na guerra, as varridelas não se faziam com vassouras, mas com rajadas de G3 sobre tudo o que mexesse... E assim foi. Passadas umas três horas, lá levantaram voo para a prometida boleia à brigada de limpeza. 
Então, um outro helicóptero baixou. Trazia o material apreendido na operação: uma caçadeira, uma máquina de costura e, num pequeno caixote, quatro livros. Ora, sem livrarias num raio de milhares de quilómetros, senti um irreprimível impulso e surripiei a livralhada que mantive na clandestinidade até ao 25 de Abril. Vejam só: uma antologia de poemas do Nicolas Guillen, edições de Havana, um livro de Economia editado na RDA, um livro de Filosofia, edições de Moscovo, e o 'Livro da 2ª Classe', do PAIGC, editado na Suécia.
Os três primeiros ainda repousam nas minhas estantes, o quarto ofereci, em boa hora, à Fundação Mário Soares e está à disposição de toda a gente, graças ao milagre interneteiro.
Eu sei que roubar é feio, que é pecado segundo os mandamentos da lei de Deus e crime, mesmo segundo os liberalíssimos códigos penais por aí em vigor. Mas, sinceramente, acho que fiz bem. Evitei que os books caíssem nas patas da frente de um sargento ou de um oficial das Informações e, depois de uma primeira análise, acabassem a fazer de papel higiénico. E acho mais: por este feito, uma condecoração com a Cruz de Paz de 2ª classe, com palma!, pendurada na lapela do casaco, mesmo ao lado do emblema do Benfica, assentava-me que nem uma luva.