domingo, 31 de março de 2013

«CARTAS PARA Q.» (2ª EDIÇÃO)

Niassa, Atlântico, 1 de Abril de 1971

Q.,

Há frases que, recorrentemente, a propósito de isto ou de aquilo ou, por vezes, sem propósito nenhum, me vêm à memória. Creio, de resto, que o mesmo acontece com muita gente. Quantas vezes citei: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo» e tive como resposta imediata da pessoa que me escutava: «Gabriel Garcia Márquez - Cem Anos de Solidão».

Hoje de manhã, ainda um pouco ensonado e saindo devagar de uma noite mal dormida, em luta acesa com um vómito que o balanço do navio, violento desde a saída do Tejo, me provoca, dei por mim a sussurrar para as paredes do camarote «Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gugor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso» e, à falta de interlocutor, eu mesmo acrescentei: « Franz Kafka - A Metamorfose». Os sonhos inquietos e as inglórias insónias que adivinho para os próximos dois anos, se os conseguir viver e ,vivendo, para os anos seguintes (stress pós -traumático de guerra  se chama e nas Américas se estuda, herança do Vietname, coisas de ricos, lá vamos nós dizendo na nossa orgulhosa pobreza franciscana) e as tristezas acordadas e repetidas que já vivo e certamente continuarei a viver neste Portugal de Além e Aquém Mar, se ao Aquém conseguir regressar são e salvo, como se diz, e eu espero ver acontecer? Que a ausência de Deus venha em nosso auxílio (inspiração Holderliniana)! Pois que aconteça e eu esteja cá para ver, mas sem essa metamorfose monstruosa de que foi vítima o nosso amigo Gugor Samsa e pela qual têm passado, as mais das vezes sem darem por isso, muitos soldadinhos mansos e de chumbo nascidos e criados tanto nas cidades grandes como nas berças, para obedecerem a quem manda (Salazar, Salazar, Salazar!) e logo, quase por artes mágicas ou milagre da Nossa Senhora (de Fátima?), metamorfoseados em matadores exímios e coleccionadores de dedos e orelhas de pretos conservados em frascos de álcool - e viva a ditosa pátria que tais filhos tem.
Nicolas Guillen, lembras-te?

Soldado no quiero ser,
Que así no habrán de mandarme
A herir al niño y al negro,
Y al infeliz que no tiene
Qué comer.
Soldado así no he de ser


Enfim, fados e fátimas, falta o futebol. E, já agora, para promover a trilogia a tetralogia dos lusos «éfes», agora em vernáculo casernícola, desabafante, desopilante : foda-se. E deixemos assim a tentativa de psicanálise a pataco (como o prometido bacalhau em tempo de eleições livres) e fiquemos pelos aconteceres banais destes dias de chumbo.

Ontem, às sete da manhã, depois de sair de tua casa, ainda na rua da Creche, onde a morte (com a pide) saiu à rua para se cruzar com o escultor José Dias Coelho, uma miúda, de uns doze ou treze anos, alta, bonita, com ar de colegial, um pouco vaidosa, pareceu-me, prometendo já mulher e peras para anos vindouros, vendo-me fardado e com os sacos de lona dos camuflados às costas, fixou-me e murmurou de forma quase imperceptível: ‘nunca mais acaba a guerra’. Logo a seguir, na pastelaria ‘Taiti’, no largo do Calvário, onde entrei para beber uma ‘italiana’, uma mulher igualmente bonita declinou o nome (Olga) e o curriculum: vendedora de frutas e legumes, estabelecida com banca no mercado de Alcântara e fez questão de me pagar o café impondo regras para a retribuição: ‘Se regressar com saúde do calvário para onde vai, não se esqueça de voltar a este Calvário para me retribuir com uma ginginha’. «Prometo», disse.
Já no táxi, que apanhei junto do cinema ’Promotora’, para o cais da Rocha do Conde de Óbidos, o taxista me incentivou a ‘matar os pretos todos, esses terroristas de merda, e acabar depressa com a guerra’. Não lhe respondi. Limitei-me a arrepanhar a cara e imitar um sorriso amarelo para o espelho retrovisor do carro, por onde ele me observava. Já no cais, depois de tirar do porta-bagagens os sacos de lona e de receber o dinheiro do frete voltou a dizer-me, desta vez com uma já íntima palmadinha no ombro, deixando escapar o seu hálito bagaceiro de mata-bicho recente: «não se esqueça de acabar com os pretos». Respondi-lhe, também com uma palmadinha no ombro, e com voz suave: «e você não se esqueça de ir para o caralho e leve consigo todos os taxistas que gostam de transportar clientes com cruzes de guerra ao peito e outras cruzes às costas. Ficou de boca aberta, mas calado. Virei-lhe as costas e caminhei na direcção de um grupo de soldados que fumavam em silêncio.


(Quem poderia aaquele tempo falar em outra cousa
senam em armas e em percebimento de guerra?)


Independentemente dos juízos de valor que possam ser feitos sobre cada uma destas pessoas, parece-me evidente que ao fim de dez anos de guerra se começa a sentir a necessidade de lhe ver um fim. A guerra cansa, a guerra fere, a guerra mata. E não há censura que consiga impedir que a evidência agrida os sentidos dos cidadãos, não há repressão que ponha fim aos sussurros crescentes das pessoas. E elas sabem, porque ouvem, porque vêem, dos feridos, que deficientes ficarão, do Hospital da Estrela e do Anexo de Campolide, das próteses na Alemanha e do regresso pela base aérea de Beja, elas sabem dos cemitérios com campas de jovens ex-combatentes, ou assim chamados, e de outros ’mortos sem sepultura’ que por terras de África ficaram, elas sabem de filhos, sobrinhos, cunhados, primos, namorados, vizinhos que partiram jovens, por vezes quase sem barba, e, meses depois, vinte e quatro no máximo, regressaram velhos e doentes de tropicais doenças e de loucuras várias (o clima, apanhados pelo clima, dizem alguns com ligeireza e, por vezes, riem mesmo). Sabem e vão falando ainda que em voz baixa e mansa. E falam mesmo as pessoas que se recusam a acreditar que a expansão portuguesa (da fé e do império), tão orgulhosamente propagandeada nos compêndios do regime, há muito entrou em inevitável e imparável refluxo. Embora pensando em vitórias impossíveis, também elas querem o fim da guerra.

Bom, avance a marinha, submarinos à frente, como dizem os militares sem que ninguém saiba muito bem o que a frase quer dizer, e reembarquemos no ‘Niassa’ que se despediu do rebocador com o toque cavo e quase sinistro da sirene e que aos nossos ouvidos soa a tiro de partida para corredores de corta-mato que se sentem entregues aos bichos, agora navio a navegar neste Atlântico -mar lusitano, como lhe chamava a propaganda do Estado Novo, receosa dos olhares gulosos que de todos os cardeais e políticos pontos se derramavam sobre as estratégicas ilhas dos Açores e Cabo Verde, em tempo de outra guerra (a mundial e segunda), sem bandeira, pirata, pois, aos olhos dos marítimos e internacionais direitos, por segurança e medo anunciado de aviões de reconhecimento que de costa africana podem partir para ver e denunciar. Dizem-me, e eu acredito, que navio mercante de transporte de tropas adquire estatuto de vaso de guerra à luz das normas de bom comportamento aceites por todos em convénios internacionais, pacíficos países e beligerantes parceiros. Navegação lenta, para a Guiné lentamente e sem força - com dez anos de cansaço - a nós poucos, que o estado do mar a isso obriga, diz o comandante da nau.


O vómito, permanente há mais de vinte e quatro horas, provocado pelo balanço de vagas enormes e incentivado pelo cheiro a vomitado que sai dos porões e se mistura com o enjoativo cheiro da tinta fresca com que o vaso se enfeitou em Lisboa. Insuportável. Como insuportável e obscena é esta divisão de classes respeitada mesmo quando se trata de carne para canhão: oficiais na primeira classe, sargentos na segunda, cabos e soldados no porão que já foi de gado e de mercadorias, em beliches de três andares.
Lembro-me dos refugiados da guerra civil espanhola, fugidos da fúria assassina das tropas de Franco - caudilho de Espanha pela graça de Deus, abençoado por Igreja (a católica, a apostólica, a romana que também agora abençoa a guerra colonial,

No coração deste Rei ferveu sempre tal zelo da honra de Cristo, e amplificação da sua fé, que não perdoando a muitos gastos de sua fazenda, nem à morte de seus naturais, fez adorar o precioso sangue de Cristo aonde dantes o dos brutos animais se sacrificava: e isto tão longe de seus Reinos, e Senhorios, quão perto ele está no paraíso, que por esta empresa mereceu. No seu tempo em Guiné, e toda a Costa de Etiópia os negros, que então viviam nas cavernas da terra ao modo de brutos animais, sem polícia humana, sem lei, sem figura de Justiça, sem direito humano, nem divino: deixadas as trevas em que viviam, levantaram Templos a Cristo, em que é louvado seu nome, e altares, em que se oferece cada dia seu corpo, e sangue santíssimo.


a nova cruzada em África, que espalha a mensagem do Senhor no meio de bombas de avião e metralha de G3. Louvada seja a acção de Sua Eminência, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, amigo e cúmplice do assassino de Santa Comba, agora só cúmplice de seu sucessor) que construiu um trono em cima de um milhão de cadáveres - recheada de moura e fascista ferocidade e recebidos em campos de concentração, em Barrancos, onde só o tenente Seixas, da Guarda Fiscal, lhes dispensou um tratamento humanitário, contra ventos, marés e ordens superiores vindas dos civis da pide e dos militares da guarda republicana e do exército. Pagou cara a dignidade, o tenente Seixas, mas sempre a dignidade teve um preço - e nunca baixo. Leis do mercado: coisa rara, coisa cara. Assim com a dignidade.
Foi no ‘Niassa’ que esses refugiados viajaram, de Lisboa para a Galiza, depois de encurralados uma noite na praça de touros de Moura (onde, certamente, pensaram nos fantasmas da praça de touros de Badajoz, ali tão perto - milhares de fuzilados,(há quem diga quatro mil) e de uma viagem de comboio. Passaram por Beja e houve quem lhes oferecesse pão e cigarros através das janelas altas, dissimulando gestos, que os ‘vigilantes‘ polícias presentes estavam em defesa do Estado. O Melo Garrido, ao tempo jovem repórter e, depois, director do ‘Diário do Alentejo’ viu e, muitos anos depois, numa noite fria, no café Luís da Rocha, em Beja, onde aportámos ambos, vindos de uma sessão de propaganda eleitoral da CDE, contou-me. E agora a ti te reconto esta história triste que também mete ‘Niassa’. Coincidências.

E, agora, a vidinha a bordo, um dia passado - e os outros cinco que faltam não irão ser muito diferentes- resume-se a isto: levantar, depois de uma noite literalmente agitada pelas águas em que o pouco sono que chegou só se instalou depois de eu ter posto uma almofada nas costas, a fazer de calço de travão, para me travar o corpo e eu não cair do beliche e andar à reboleta pelos cantos do camarote.
Pequenalmoçar frugalmente, maneira de dizer, porque, de facto, não comi nada, apesar da oferta variada e bem apresentada (estou a falar da primeira classe, da classe de oficiais, é preciso não esquecer), apetecível aos olhos de todos e aos estômagos dos mais resistentes ao enjoo. Café, muito café com cigarros, muitos cigarros - vim bem abastecido de ‘Gitanes’ que me trouxeste de Paris. Larachas, algumas larachas, para fingir participação na conversa que à minha volta passa e, de todo, não me interessa, maneira de mascarar a solidão e a marginalidade que sinto. Serve para passar o tempo. E a passagem do tempo é tudo quanto quero, pelo menos, nos próximos dois anos para que o soldadinho, finalmente, volte do outro lado do mar.
Passeio pelos decks, com cuidado para não cair que o mar não se mostra colaborante. Na segunda classe, a dos sargentos e furriéis, larachas, mais larachas. E mais uma descida, mais uma viagem, como nos carrosséis de feira, até à gente de terceira classe, como no transatlântico do José Rodrigues Miguéis, gente que, saindo do nada irá chegar à miséria (Marx, o Groucho), só que, desta vez, fardados: cabos e soldados. E no regresso a Lisboa, trará o ‘Niassa’ mais uma classe de passageiros, os de quarta, num porão ainda mais fundo e que às famílias serão entregues em urnas de chumbo cobertas pela bandeira nacional com direito a funeral ao som de balas de salva, no cemitério da aldeia. Mortos ou vivos mas nunca derrotados, assim regressarão, cumprindo as ordens dos tiranos e tiranetes que o fazem em nome dos superiores interesses da nação.
E a descida acaba aqui, que o cheiro vindo do porão puxa o vómito. Nem a laracha consente. É zarpar e depressa. Para o deck da primeira classe que vai mais higiénico e tem melhores vistas (para o mar e só para o mar, mar por todos os lados). Leitura tentada mas, por impossível - cabeça e mar não ajudam - logo abandonada. O mar. A contemplação, primeiro, o tédio, depois. Assim será, certamente, até Bissau. Faltam cinco dias.
O almoço - servido por criados, também eles fardados a rigor, mas civil, com os casacos brancos e laços pretos e os salamaleques que sempre usaram nas viagens e cruzeiros turísticos e ainda não esqueceram, respeitando a hierarquia imposta pelos regulamentos militares que desmultiplica a primeira classe em mais três classes: a primeira, dos oficiais superiores, a segunda, dos capitães e a terceira, dos subalternos - é composto por pratos aparentemente bem confeccionados mas que não provo. Fico-me pela sopa servida em prato que não posso largar sob pena dele voar para o meu colo ou para o colo do vizinho da frente.
Depois, café, mais café. Cigarros, mais cigarros. Recuso o álcool, para almareio já tenho que baste e o estômago não está para esses convites. Pasmo, até, de ver tanta bebedeira a bordo. A seguir, a carteação que se pratica para todos os gostos, da paciência à sueca, do ‘king’ ao bridge, a feijões ou a dinheiro mas, basicamente, com um único fim: disfarçar a lentidão dos ponteiros dos relógios.
Ao jantar e depois dele, tudo, se não igual, pelo menos semelhante mas, desta vez, com a actuação da orquestra do navio que bem se esforça para amenizar a tristeza que, por aqui, é moeda corrente.
Conheço o saxofonista que tocou na ‘Pax-Júlia’, orquestra lá do burgo, Beja depois dos romanos e dos árabes, que animava os inesquecíveis bailes da minha juventude (capa e batina, meninas atracadas, caras encostadas, ligeiros toques de coxas, discretas apalpadelas, o erotismo possível, com tímidos gozos de ambas as partes, longe dos olhares dos pais - no bar - e das mães - nas mesas cheias de pirolitos e laranjadas - onde nos dirigíamos para ,cerimoniosamente, perguntar «a menina dança?», com o coração aos saltos pelo medo de uma ‘tampa’. E, depois de resposta positiva, os tangos, ‘paso dobles’, mais tarde, o ‘twist’. Bons tempos, digo eu agora, parecendo um velho a desfiar memórias.
E, depois das valentes musicadelas, outra vez as cartas: mais sueca, mais king, mais bridge, mais paciências. E amanhã e depois e depois, certamente, assim será. Como nota humorística nesta noite monótona, apenas a ‘caça’ ao alferes iniciada por um capelão da Marinha, maricão exibicionista, que nos acompanha e se mostra mais interessado no sexo dos homens do que na salvação da sua alma, irremediavelmente dividido entre o desejo de ver o ‘Niassa‘ transformado, por artes mágicas, numa mini-Sodoma e a deontologia que o ‘obriga‘ à obediência aos divinos Mandamentos. Não teve sorte na caçada (Deus também não deve tê-lo ajudado. E essa ajuda é decisiva em todas as actividades humanas, mesmo naquelas viradas para as partes baixas). Sorte tive eu por ele (capelão, representante da lusa cleresia e tenente) não marrar comigo, talvez por achar pouco atraente um tipo amarelado, com ar quase feroz de quem tenta domar a revolta e o enjoo. Se o tivesse feito, lá teria eu de o mandar fazer companhia ao taxista de Lisboa, com a insensibilidade diplomática que sempre acompanha as minhas respostas a perguntas de respostas rápidas.
Farto, regressei ao camarote para te dar, em recato, os beijos que aqui ficam em envelope fechado até Bissau, de onde os enviarei com muitas saudades de todos os outros que trocámos ao vivo e que foram muitos e bons.

Mas estas memórias refrescam minhas chagas, e renovam minhas saudades, porque me vejo morrer em terras alheias.

Teu,

P.
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Do livro (inédito) "CARTAS PARA Q."