"...POESIA..." OU SEBASTIÃO DA
GAMA VIVO -A MÚSICA DO ENTARDECER!
Dorme
dorme menino do pai
Dorme
dorme que o soninho já vai
Aí vem o
João Pestana
Pé
ante pé
Voz
que não me engana
Já
lá vem o João Pestana
Pé ante pé
Voz
que não me engana... (1)
Pois é assim que
docemente canto, canto desde há sessenta e um anos ainda e
já, canto-lhe a balada doce do entardecer ao som dos cachões rugidores do oceano da Arrábida debruçada sobre o
resfolgar dolente dos rebentamentos no sopé que os trava, acompanhados das
variantes e valáteis notas das cores e dos perfumes que o maciço gigante
desprende, todo cheio de belas e recortadas enseadas que os olhos bebem no cair do dia, e
se espalham e se espelham na alma
sôfrega por mais horas que hão-de vir, canto o que o maciço solta e o coração
interpreta!...
Canto, e
cantarei até quebrar o sono deste meu
filhinho de raiz, deste filho amado que não é só meu porque pertence a todos os poetas e a todo o mais
puro lirismo da alma da Poesia Portuguesa de alma parida--mas canto, canto
porque o criei ao longo do tempo que voa e o adormeço neste Fevereiro pardacento para
aquecer o frio do meu coração. Canto-o desde os meus dez anos, sentado nas
pernas da minha mãe que mo lia à braseira, mortiça já, daqueles serões
alentejanos da meninice que teimam em não passar...
Canto
enquanto se não extingue esta melodia
doce, toda enfebrecida de sonho, toda cheia de cheiros ao tombar da tarde das
minhas fantasias sempre renascidas...
Teimosamente
canto e canto o meu filho do meu tutano, canto sem lamechice e sem pena, canto nele a alegria de uma emoção incontida, sem o
látego das perdas dolorosas mas com a suprema satisfação de pai sobejamente
compensado.
Grato
meu Sebastião, meu filho e meu pai da tua e da minha poesia de sentir-te e sentir-me
de vive-la!!!
Como posso
eu chorar ou lamentar o teu sono se tu mesmo dele não tiveste pena e o previste
e até o cantaste em versos que hoje continuam a ser de uma nitidez que
"apunhala" as sensibilidades, comove as idiossincrasias e promove as
pessoas até ao cimo mais altaneiro da completude humana lírica?! Mas não é
disso o caso em:
A COMPANHEIRA
Não te busquei, não te pedi: vieste.
E desde que nasci houve mil coisas
que a meus olhos se deram com igual
simplicidade: o Sol, a manhã de hoje,
essa flor que é tão grácil que a não quero,
o milagre das fontes pelo estio...
Vieste.(o Sol veio também, a flor, a
a manhã de hoje, as águas...) Alegria ,
mas calada alegria, mas serena,
entendimento puro, natural
encontro, natural como a chegada
do Sol, da flor, das águas, da manhã,
de
ti, que eu não buscara nem pedira.
E o Amor? E o Amor? E o Amor?
- :Vieste.
(2)
acontecendo, de facto, nos
VERSOS DA MENINA MORTA
Olha,
quando vieres, Morte,
não venhas sorrateira:
Quero sentir-te bem;
levar bem nítido, nos lábios
o travo do teu beijo...
Chorem os outros, Morte
a dolorida minha hora final.
Para mim, que bom saber até ao fim
a que sabe a Vida...
(3)
A mística
da morte e o convívio com ela desde a idade tenra e Sebastião foi aquela criança tenra nos seus 27 anos cortada cerce,
essa ideação nem sempre percorre os seus poemas e ou informa a magnifica atitude
pedagógica que derramou nos seus alunos, sequer em quaisquer outras formas de
convívio publico, mas viver foi sempre uma bandeira adejante ao vento agreste de um certo modo de
ser de existir e a rampa íngreme que corajosamente trepou desde a sua Serra,
buscando nela a paz como um conforto balsâmico, olhando as grandes imensidões
marítimas como se um banho de plenitude tomasse e bebendo o céu infinito como
uma procura do seu Deus maior e dele o reflexo-uma convivência pagã fantástica
com o mítico cristão ardente de luz na saga epopeica de viver, sabendo-se
prematuramente estar condenado à morte.
Que coragem meu filho, meu irmão e meu pai da alma. E tudo pela POESIA, a
última palavra que terás balbuciado naquela manhã da tua morte-vida.
Rendo-te homenagem, meu Bastião!
Mas
sentimo-lo, brincando, ao escrever o
SONETO DO GUARDA-CHUVA
(AO A.M.C.V.--perdão)
ò meu cogumelo preto,
minha bengala vestida,
minha espada sem bainha
com que aos
moiros arremeto
chapéu-de-chuva, meu Anjo
que da chuva me defendes,
meu aonde
pôr as mãos
quando não sei onde pô-las,
ó minha umbela--palavra
tão
cheia de sugestões,
tão musical, tão aberta
meu pára-raios de Poetas,
minha
bandeira da Paz,
minha
Musa de varetas!
(4)
O
percurso deste poeta- professor-pedagogo, de tantas e tantas humanidades e humildades,
diz assim, sucintamente:
SEBASTIÃO DA GAMA
FICHA BIO-BIBLIOGRÁFICA
SEBASTIÃO ARTUR CARDOSO DA GAMA nasceu em Vila
Nogueira de Azeitão, no dia 10 de Abril de 1924. Matriculou-se, em 1942, na
Faculdade de Letras de Lisboa, em cuja secção de Filologia Românica veio a
licenciar-se, cinco anos depois, com a classificação de 17valores.Foi professor
do Ensino Técnico Profissional ,-primeiro, como provisório, na Escola Técnica
de Setúbal; a seguir, estagiário, na
Escola Veiga Beirão, de Lisboa, e, concluído o estágio com 18 valores,
foi colocado em Estremoz, onde se conservou até á sua morrte,-ocorrida em
Lisboa, no dia 7 de Fevereiro de 1952.
Publicou
três livros de poemas: SERRA-MÃE, em 1945,, CABO DA BOA ESPERANÇA, em 1947,
CAMPO ABERTO, EM 1951.
Colaborou
, entre outras, nas revistas AQUI e
ALÉM, ATLÂNTICO, TURISMO, MUNDO LITERÁRIO, ÁRVORE e TÁVOLA REDONDA.
Realizou
algumas palestras e conferencias: uma delas-LUGAR de BOCCAGE na nossa POESIA de
AMOR-foi este ano publicada , em separata, pela Revista da Faculdade de Letras
de Lisboa, que desse modo prestou homenagem ao seu antigo discípulo.
Deixou,
inédito, um quarto livro de poemas que em breve será publicado. Pensam, por
outro lado os seus amigos reunir em volume uma selecção de Cartas suas, - que
será , ao que lhes parece, um complemento indispensável para o estudo da obra e
da personalidade de Sebastião da Gama.
(5)
Variadíssimos foram os poetas, os
amigos ou os críticos que o referem em atitudes e palavras de pesar, tanto pessoais como esculpidas em
poemas e prosas que extravasam o âmbito da contemporaneidade do 7 de Fevereiro
e se espraiam nos anais da Literatura Portuguesa escrita:
Lápide
Não lamentes morrer na juventude:
Confiante, adormece as mãos no
peito,
Desprezando brandões, véus, ataúde,
A cal e a sombra do coval estreito.
Pra
ti, a morte não foi cega e rude;
Moldou, mais firme, o teu perfil de eleito:
Imagem
da beleza e da virtude,
O
corpo inerte é o único perfeito.
Não lamentes desejos, beijos idos:
O
amor é dor doendo nos sentidos;
O
coração gelado, eis o segredo.
Cada hora que
somos nos desgasta:
O
tempo é vil e a juventude é casta.
-
Só merece viver quem morre cedo.
(11-4-52)
(6)
ELEGIA
Dos meus olhos contemplo
Navios
de vidro lapidado
Peixes
boiando verdes de bronze
Algas
de braços nus acariciando
O
chão de mar pintado no cérebro
Tudo movido por uma canção roxa dolorosa
Nas minhas mãos tintas
De
um vinho de cravos
O
silencio murmura o teu nome
Com
um grito de pássaro louco
E
orvalhados os répteis
Procuram
o calor nas tuas mãos
(7)
Hoje é 7 de Fevereiro de 2013. Já o sol se
desmaia nos cabeços serranos e a brisa gelada convida ao agasalho. O Oceano
metalizado de cinza vai selar-se
à noite de breu, milenária, impávida, sem uma vela acesa de barco que se faça à orla, vindo dos longes, nos longes, desses longes de onde nada surge mas onde tudo fica...
à noite de breu, milenária, impávida, sem uma vela acesa de barco que se faça à orla, vindo dos longes, nos longes, desses longes de onde nada surge mas onde tudo fica...
O meu menino, abraçado a mim, já dorme,
mas eu teimo em continuar a cantar-lhe,
mansamente, até que acorde, pequenino, de novo, dentro do meu coração, teimo
neste musicar trauteado, baixinho, insisto nesta balada do João Pestana dos
filhos inermes ao colo dos pais embevecidos- João Pestana distante, misterioso,
tudo inacabado como as mais belas sinfonias interrompidas, desgarradas ao vento!
Daniel
Nobre Mendes
NOTAS
(1)- Cantiga de embalar que faz
parte do imaginário mítico infantil Nacional e cujas versões são diversas;
equivale ao Pedro Chosco, Galego, e ao Sandman, do Reino Unido.
(2)- Sebastião da Gama, in fascículo
1 de Távola Redonda-Folhas de Poesia, 15 de Janeiro de 1950.
(3)- David Mourão- Ferreira,
Para uma interpretação da POESIA DE SEBASTIÃO DA GAMA, in Távola Redonda-Folhas
de Poesia, fascículo 16, de 30 de Abril de 1953.
(4)- Sebastião da Gama, ARRÁBIDA, 1 -- Fev.--
1950, in Távola Redonda, fascículo 16, de 30 de Abril de 1953.Inédito.
(5)- in Távola Redonda, fascículo
17, de 30 de Abril de 1953.
(6)- António Manuel Couto Viana,
11-4-52, in Távola Redonda, fascículo 17, de 30 de Abril de 1953.
(7)-- Artur Ribeiro, in Távola
Redonda, fascículo 17, de 30 de Abril de 1953.