…eu sou um grande ouvidor de histórias, não
só de histórias mas de confidências…que eu , de certo modo, transfiguro em
imagens e sons, ou tento transfigurar em imagens e sons…e para isso há o lado
convivial, há o lado…fiz isso durante muitos anos, sempre com o copo na mão e
com o barulhinho do gelo… que é uma música muito particular, simultaneamente
sonora e imaginativa, um bocado como o canto da sereia…
(Fernando Lopes, em “ Fernando Lopes, provavelmente”, de
João Lopes)
Como eu gostava de ter conhecido o Fernando Lopes, o “cineasta improvável”, eu que conheço os
seus filmes quase plano a plano, sequência a sequência, de tanto os ter viajado.
Para falar com ele assim de “duas ou três coisas”…
Lembro-me de uma amiga, que mora por ali, contar-me aqui há tempos,
pelo fim de uma tarde: O Fernando Lopes estava sentado à porta da Alga,
sozinho, com um copo na mão… encontro-o muitas vezes, quase sempre sozinho, à
porta da Alga, por ali… para ali!... E de outra vez: hoje trazia um chapéu, um
chapéu preto, de feltro, e não me pareceu nada bem... um cigarro, um copo na
mão…
Sozinho, à porta da Alga, a não parecer nada bem... Fiquei a pensar no
Fernando Lopes, pelos fins de tarde, sentado à porta da Alga “com um copo na mão e o barulhinho do gelo”:
um dia vou ter com ele, meto conversa! Como não faz nem a mínima, não me
conhece nem deste nem de outros quaisquer carnavais, vou ter de pensar num
estratagema qualquer. Talvez entrar na Alga, sair também de copo na mão, ir
para ao pé dele, dizer boa tarde, ”o
barulhinho do gelo” como senha, como salvo-conduto, atrever-me, talvez, a citar
alto o Joseph Roth, A Lenda do Santo Bebedor: “Que Deus nos dê a todos nós, os
bebedores, uma morte tão suave e tão bela”− o santo e a senha!… se não me pedir
logo, delicadamente, que vá ali ao balcão do Gambrinus ver se está lá, talvez
me diga com um sorriso, generosamente, como diz aos seus amigos: “senta aí!”...
“melancólico de manhã, litigante de
tarde”, não esquecer!... teria de lhe confessar a minha irrecomendável
condição actual de bebedor “bissexto” que é também, no que respeita aos filmes
que (não) vão fazendo, a condição dos cineastas portugueses no geral: “cineastas
bissextos”… a conversa talvez engrenasse por aí, talvez não… talvez mais pela
confidência que tinha a fazer-lhe, o recado que lhe levava: parecia-me imoral
que, descontando o Cerromaior do Luís Filipe Rocha, o Alentejo das pequenas
vilas, das pequenas vidas, nunca tenha sido filmado como deveria, e só ele o
poderia fazer!... eu “sabia”, que só ele, um “cineasta improvável”, e também provavelmente por isso, o poderia
fazer (o Felinni de Os Inúteis também poderia!)… o poderia ter feito!... Sabia-o
há muitos anos, tivera essa intuição, ao ver na cinemateca “As pedras e o
tempo”… filmar aquele Alentejo de “geografia variável”, situado ali assim, nem
sequer estranhamente, entre o Kafka e o Manuel da Fonseca… talvez depois subíssemos
a Av. de Roma e ficássemos no Vava a conversar e deixássemos que a noite fosse entrando,
que tudo fosse assentando, num “pacto de sal”, e eu lhe contasse das vilas do
Alentejo e dos seus anos de cinza, dos seus “conspícuos habitantes” (Salve J.M.!),
daquela galeria de personagens talhadas no tempo, com sede de tudo, remordendo culpas, joeirando um remorso qualquer… a ter
enlouquecido e ir namorar de chapéu alto, a ir preso, a voltar de ter ido preso,
a ficar “de quarentena”, a contar do
Tarrafal, a esperar pela camioneta da tarde, pela camioneta da tarde, pela
camioneta da tarde… a transformar-se em poeira, em desmemória, em retrato
encardido…
Vê lá, vinha a lembrar-me de tudo isso quando voltava do Palácio Galveias onde já nem sequer estavas quando cheguei:
estás a ver, às vezes não podemos mesmo “dar
tempo ao tempo”, como pedias para
os teus filmes… e também, já agora:
eras provavelmente o único cineasta (que raio de expressão mais “estratosférica”…)
que, quando estreava, eu não deixava para o dia seguinte ir comover-me com o
teu trabalho, com o que tinhas feito, com o que nos tinhas feito… e nem sabes a falta que isso me fica a fazer!
Mas a gente vê-se, que remédio! um copo na mão e o barulhinho do gelo…
Casimiro Branco