quinta-feira, 24 de maio de 2012

Fernando Lopes, cineasta improvável, com um copo na mão e o barulhinho do gelo



…eu sou um grande ouvidor de histórias, não só de histórias mas de confidências…que eu , de certo modo, transfiguro em imagens e sons, ou tento transfigurar em imagens e sons…e para isso há o lado convivial, há o lado…fiz isso durante muitos anos, sempre com o copo na mão e com o barulhinho do gelo… que é uma música muito particular, simultaneamente sonora e imaginativa, um bocado como o canto da sereia…
(Fernando Lopes, em “ Fernando Lopes, provavelmente”, de João Lopes)


 Como eu gostava de ter conhecido o Fernando Lopes, o “cineasta improvável”, eu que conheço os seus filmes quase plano a plano, sequência a sequência, de tanto os ter viajado. Para falar com ele assim de “duas ou três coisas”
Lembro-me de uma amiga, que mora por ali, contar-me aqui há tempos, pelo fim de uma tarde: O Fernando Lopes estava sentado à porta da Alga, sozinho, com um copo na mão… encontro-o muitas vezes, quase sempre sozinho, à porta da Alga, por ali… para ali!... E de outra vez: hoje trazia um chapéu, um chapéu preto, de feltro, e não me pareceu nada bem... um cigarro, um copo na mão…
Sozinho, à porta da Alga, a não parecer nada bem... Fiquei a pensar no Fernando Lopes, pelos fins de tarde, sentado à porta da Alga “com um copo na mão e o barulhinho do gelo”: um dia vou ter com ele, meto conversa! Como não faz nem a mínima, não me conhece nem deste nem de outros quaisquer carnavais, vou ter de pensar num estratagema qualquer. Talvez entrar na Alga, sair também de copo na mão, ir para ao pé dele, dizer boa tarde, ”o barulhinho do gelo” como senha, como salvo-conduto, atrever-me, talvez, a citar alto o Joseph Roth, A Lenda do Santo Bebedor: “Que Deus nos dê a todos nós, os bebedores, uma morte tão suave e tão bela”− o santo e a senha!… se não me pedir logo, delicadamente, que vá ali ao balcão do Gambrinus ver se está lá, talvez me diga com um sorriso, generosamente, como diz aos seus amigos: “senta aí!”... “melancólico de manhã, litigante de tarde”, não esquecer!... teria de lhe confessar a minha irrecomendável condição actual de bebedor “bissexto” que é também, no que respeita aos filmes que (não) vão fazendo, a condição dos cineastas portugueses no geral: “cineastas bissextos”… a conversa talvez engrenasse por aí, talvez não… talvez mais pela confidência que tinha a fazer-lhe, o recado que lhe levava: parecia-me imoral que, descontando o Cerromaior do Luís Filipe Rocha, o Alentejo das pequenas vilas, das pequenas vidas, nunca tenha sido filmado como deveria, e só ele o poderia fazer!... eu “sabia”, que só ele, um “cineasta improvável”, e também provavelmente por isso, o poderia fazer (o Felinni de Os Inúteis também poderia!)… o poderia ter feito!... Sabia-o há muitos anos, tivera essa intuição, ao ver na cinemateca “As pedras e o tempo”… filmar aquele Alentejo de “geografia variável”, situado ali assim, nem sequer estranhamente, entre o Kafka e o Manuel da Fonseca… talvez depois subíssemos a Av. de Roma e ficássemos no Vava a conversar e deixássemos que a noite fosse entrando, que tudo fosse assentando, num “pacto de sal”, e eu lhe contasse das vilas do Alentejo e dos seus anos de cinza, dos seus “conspícuos habitantes” (Salve J.M.!), daquela galeria de personagens talhadas no tempo, com sede de tudo, remordendo  culpas, joeirando um remorso qualquer… a ter enlouquecido e ir namorar de chapéu alto, a ir preso, a voltar de ter ido preso, a  ficar “de quarentena”, a contar do Tarrafal, a esperar pela camioneta da tarde, pela camioneta da tarde, pela camioneta da tarde… a transformar-se em poeira, em desmemória, em retrato encardido…
Vê lá, vinha a lembrar-me de tudo isso quando voltava do Palácio  Galveias onde já nem sequer estavas quando cheguei: estás a ver, às vezes não podemos mesmo “dar tempo ao tempo”, como pedias para os teus filmes e também, já agora: eras provavelmente o único cineasta (que raio de expressão mais “estratosférica”…) que, quando estreava, eu não deixava para o dia seguinte ir comover-me com o teu trabalho, com o que tinhas feito, com o que nos tinhas feito… e nem sabes a falta que isso me fica a fazer!
Mas a gente vê-se, que remédio! um copo na mão e o barulhinho do gelo

Casimiro Branco