domingo, 18 de dezembro de 2011

Jazz After Midnight




“A música de jazz é uma inquietação acelerada”                                              
                                               Françoise Sagan

(Para a Luísa)


(…porque chovia, porque perdera o último comboio, porque na gare havia um cartaz e entrara num teatro, podia estar agora a lembrar-se daquela noite no Outono como se numa fotografia antiga que tivesse emoldurado a talha dourada e veludo vermelho-sanguínea: levemente inclinada no proscénio de um teatro à italiana num final de espectáculo, o cabelo apanhado, um vestido preto comprido com uma gargantilha, os braços caídos ao longo do corpo numa meia vénia a desfazer-se…meio debruçada para o fogo-fátuo dos aplausos num final de terceiro acto, meio fechada sobre si própria...e não olhava para o público!...
Fora sempre das coisas que mais o comovera, esse momento do actor quando, curvado para os aplausos, é todo ele embaraço, pudor, fragilidade e contingência… não é já a personagem que deixou pendurada lá atrás a olhá-lo, enigmática, no espelho do camarim, quando o pano caiu, ainda que se mantenham os adereços e o figurino, mas também não é ele próprio ainda aquele que, com gravidade, se curva à boca de cena… nesse caminhar indeciso entre personagem e actor, nesse desfazer, na tensão desse duplo, nesse entreacto silencioso jogado à luz crua da ribalta na terra de ninguém do proscénio, o actor é só a bondade desarmada da gratidão…
A última coisa que guardava dela era a memória dessa bondade – dessa meia vénia a desfazer-se…)

…durante algum tempo ainda voltei lá, mesmo quando depois fui viver para a Praça das Flores − sempre aos sábados, como um ritual: café da manhã na Cister, o 24 na Politécnica…descia no Arco do Cego mas não encontrava ninguém! Avistava era sempre aquela prostituta no passeio da Praia da Vitória, sempre ali, de sentinela, aquela prostituta pequenina que cruzavas quando descias do eléctrico na Estefânia… já não muito nova, com o cabelo amarelo, o vestido de organdi amarelo às florinhas (dizias que era de tafetá!), quase sempre o mesmo vestido amarelo − a “usucapião”!...
…sina de Lisboa, tudo aquilo foi sendo arrasado, a Paulistana, o Monumental, o prédio do Anjo… o Monte Carlo desapareceu e com ele o velho empregado dos últimos tempos, o “Fred Astaire”, aquele que nos levou a viajar... tinha servido a vida toda nos paquetes da Colonial e caminhava agora como que num bolero solitário, à cadência do mar, num improvável tombadilho desarvorado… a bandeja cheia de cálices de conhaque, de aldeia velha, de macieira, de chávenas de café, do que fosse numa mão e a outra volteando, solta no ar, sapateando ao longo do café como se caminhasse a equilibrar-se sobre uma ponte pênsil…ainda cai à água! brincavas, e um dia caiu: homem ao mar!... chamavas-lhe Fred Astaire e gostava de contar coisas das viagens, das tempestades, dos embarcados nos paquetes… nas horas tranquilas do café, ao fim da noite, cruzava sorrateiramente o atlântico para, navegando pelas Bahamas, desembarcar num amanhecer luminoso, de linho branco e panamá, na Havana de Fulgencio Batista (a única que conhecera!), para ir a “um certo sítio”… lugares que só conhecíamos dos mapas ou dos livros do Hemingway ou dos filmes do  Hawks: Martinica, La Guaira, Curaçau, nas Antilhas Holandesas… cruzando todo o mar das caraíbas para desembarcar em Caracas, navegando para o Recife, o Rio e Buenos Aires… Fred Astaire descendo em cada cais “acostável” da linha das Américas, do Caribe ao Rio da Prata e entre dois meridianos, para ir a um certo sítio, para se “desobrigar”… sempre elegantíssimo, flor fresca na lapela, de linho branco e panamá…

(…às vezes estou ouvir o John Coltrane ,”I'm old fashioned”, e vê lá! dá-me para entrar na Zara, sabes, aquela Zara que meteram dentro do Monte Carlo, só crianças e  roupa de senhora… ponho-me para ali a mexer nos topes e nas camiseiras e nos collants de viscose, chega sorrateira a menina, posso ajudar? e então  arrisco, atrapalhado, a salvar a face, que quero ver meias, soquetes de licra… por me parecer o mais inofensivo, o mais consensual e unisexo, sou eu a dizer!... a menina sorri logo às “soquetes”, e enquanto não leva dali o sorriso e não volta já sem o sorriso e com a caixa das licras, fico a olhar para aquilo tudo a tentar perceber, a encaixar-me no puzzle dos tempos… no balcão da menina, que entretanto voltou com outro sorriso que tinha guardado lá dentro, vejo  a “Castaffiore” acabada de chegar da Defensores de Chaves já na groselha e a fazer palavras cruzadas… desvio logo o olhar do decote da menina porque a Castaffiore está mesmo por cima do colo do pescoço dela e o copo da groselha no meio das “saboneteiras” do Vinicius, desvio o olhar para não ser mal interpretado, não vá a menina pensar…e então são as nove da manhã e ali na mesa mesmo ao lado da Castaffiore, a criada do senhor coronel sentou o senhor coronel que vem todo  escanhoado do barbeiro lá do fundo, de junto dos bilhares, e fica ali a folhear o seu jornal e a tirar azimutes até por volta da uma, quando a criada chega para o levar pelo braço, de azimutes guardados jornal lido e café resolvido…o Abelaira, o “Cabelaira”, continua a escrever naquela mesa junto à grade branca de ferro forjado e a Cacilda traz hoje aquela saia pendurona e uns sapatos marroquinos, nós todos a gabar os sapatos marroquinos da Cacilda pena que lhe esconda os joelhos, o que foi consensual, até a própria concordou, pudera!... tudo isso a passar-se na sala do meio que tinha aqueles degraus e acabava num balcão de bar, foi onde o Fred Astaire caiu ao mar daquela vez e onde está agora um manequim de madeira sozinho metido num tailleur rosa chock…agora vou ter de sair porque não há meias de licra para o meu número, a menina enganou-se e disse “não há meias de licra para o seu nome” e sorriu outra vez e estivemos quase a ficar amigos, desde que ali estou já sorriu três vezes, que tente na rua Augusta ou na loja da  Garret…o que eu gostava agora era de continuar ali a ouvir o John Coltrane, “I’m old fashioned”, junto ao tailleur rosa chock solitário e à menina das saboneteiras, o resto da tarde, era do que eu gostava!... mas tenho de sair e então contorno o sr Manuel, ali de cócoras  profissionais, o sr.Manuel engraxador e vinhateiro, que nos põe os dois pés a brilhar quase ao mesmo tempo, então sr Manuel? cá estamos… sr Manuel, sou eu a seguir? e o míldio sr Manuel?, e o oídio, a traça das videiras?...  agora foi-nos logo morrer na aldeia da Beira, de velhice e avc, quando reparava um motor, então, sr Manuel,  isso faz-se?... cá estamos!...ao sair evito o Pacheco e  tropeço no Abelaira, mais um bocadinho acabavam por ir chegando todos e inundavam a Zara e ficava assim uma vernissage ou uma assembleia geral dos inválidos do comércio, mesmo o Zé Gomes Ferreira, lá mais para o fim da tarde, finalmente de ténis e com umas calças sovadas de bombazina…)

…todos assim “ao desamparo”, numa espécie de ociosa orfandade: órfãos relutantes, uns dos outros e dos cafés do Saldanha…

 … o Monumental esventrado, uma dor de alma!... olhávamos para tudo aquilo como quem contempla uma catástrofe: o que restava de um patamar, o labirinto dos corredores, as janelinhas do projeccionista, os nichos dos camarotes, a cantaria ainda de pé da porta dos artistas (a Laura Alves a deixar-se morrer!)… os operários lembravam hienas azuis a mordiscar com os martelos pneumáticos naquela carniça toda…quarteirão do Convés, do Porão da Nau a cair aos bocados − ”little Danzig!”, chamávamos àquilo… a ficar uma cidade fantasma, uma cidade do pós-guerra…

(…a notícia a chegar num dia estranho, gelado e luminoso… ­um dia de palavras breves, de olhos embaciados, persianas corridas…razões de força maior… enganei-me tanto, a vida afinal não é nada do que estava à espera… não tem nada a ver!…mas   também, sem ensaio geral, não há como corrigir as marcações… que tinhas deixado uma carta!)

…tudo a desaparecer, como se um tornado, um mau vento por ali… mas já viste, a prostituta pequenina lá continua no seu passeio da Praia da Vitória, naquele seu passo miudinho, na esquina dela… só ela a restar daquele tempo, a sobrar daquele lugar… dizíamos: está ali há tanto tempo, agora se a quiserem expulsar até pode invocar o usucapião… assim ficou a “usucapião”!… sina de Lisboa que sempre teve esse destino, essa vocação: ou são os terramotos ou é a cupidez ou é a providência cautelar ou é aquela lei velha do Salazar… sempre a desmoronar, a cair aos bocadinhos, todos os dias... agora voltaram as hienas azuis com os seus modos gritados, os seus martelos pneumáticos, os seus capacetes, as suas gruas, as suas botas chapeadas…e a “usucapião” no meio das hienas azuis… ainda lhe cai algum prédio em cima, penso às vezes…
…porque me estou a lembrar agora de tudo isso? talvez seja do Cutty Sark, peço sempre Cutty Sark…não, não fiquei conhecedor a esse ponto: peço Cutty Sark porque, tal como o Fred Astaire, gosto de navios, de bússolas, de quadrantes, de sextantes, de astrolábios… de inclinómetros!... dessas tralhas antigas do mar…e de pedir Cutty Sark no balcão dos bares quando anoitece, decidido − eu que sempre fui um indeciso, um “indecidido”, como dizias − Cutty Sark, traga-me Cutty Sark!.
…ou talvez seja do Charlie Parker, do bebop, do lirismo subido do bebop… ou talvez ainda por gostar de tudo o que resiste, de tudo o que desafia o tempo, que se atreve a um bocadinho menos de eternidade…de tudo o que permanece! por isso gosto da prostituta pequenina, ali de atalaia, no seu território…

  
− Charlie Parker! Começou por dizer, mal acabaram de tocar.
− Charlie Parker?
− Charlie Parker, “all the things you are”!... a Ella também cantava aquilo… depois prosseguiu: Bird, o maior saxofonista de todos os tempos, o maior saxofonista de que há memória, desde que há saxofonistas…uma espécie de Mozart do Jazz (o mesmo Requiem, a mesma morte, e contudo…), morfinómano genial !...fundou o bebop, no pós-guerra, com o Dizzie Gillespie  (o bebop, só para virtuosos!), ele próprio também uma  vítima da guerra, sabias?
− Charlie Parker? Não, não sabia!
− Foi!... às vezes estava tão pedrado que adormecia enquanto a orquestra continuava a tocar, adormecia mesmo! a orquestra “I’m in the mood for love” e ele adormecido! a cabeça ligeiramente inclinada, como se estivesse a escutar…
− E a orquestra continuava mesmo assim? Sem o seu… Mozart?
− Continuava, continuava mesmo assim, sem o seu…Mozart! mas bastava tocarem ao de leve no ombro do seu Mozart para ele imediatamente reentrar, como se nada tivesse acontecido… nunca falhava!...
E continuou citando Charles Mingus, passou por John Coltrane  (tens de ouvir I’m old fashioned, tens mesmo!), Terence Blanchard (tens de ouvir He’s wearing my bathrobe, tens mesmo!)  Ian Garbarek,  que o acompanhava sempre nas viagens para o sul, mas ela já  não estava a ouvir:
− A Mafia ajudou os aliados na libertação da Itália e a conta a pagar, a “folha de encargos”, incluiu, entre outras coisas, a entrada da droga nos bairros negros das cidades americanas… foi isso que o tramou!...
Era ao fim da noite e a noite a “deslaçar”, como ela dizia… ficara o pianista e o sax-tenor, alguém pedira e o pianista ”gentilmente concedera” e estava agora a tocar Sur   le pont d’Avignon  e ela pusera-se a trautear, com leveza,  Sur le pont d’Avignon/ l’on y danse, l’on y danse/ sur le pont d’Avignon/ l’on y danse tout en rang… depois esqueceu o pianista e disse:
− Gostava de ir a Avignon, gostava tanto de ir a Avignon, no verão, quando é o festival… a Europa toda em inter-rail e nunca fui a Avignon, e sempre quis ir…Mas como se não a tivesse ouvido, olhara para o fundo da sala, para o mais longe que podia olhar e deixou cair, como uma moeda: 
− Jam!
− Jam o quê? Ram Jam… black betty?
− Não, Jam, só Jam!  Jota A eM… Session, podes acrescentar.
− Jam Session?
− Isso!
− Jam Session então!... mas já estava longe, a fastar-se…
Jazz After Midnight Session, pensou ele mas também não o disse.
L’on y danse tous en rond/ et puis encore comm’çà…sur le pont d’Avignon/ la musique c’est si bon… voltou ao pianista, depois de um momento. Podíamos ir de comboio, parávamos em Aix e…
− Já com o John Coltrane foi mais a heroína, o álcool e a heroína, outro “patamar”…
− …as coisas que tu sabes, mas as coisas que tu sabes…e se parasses para aí de tagarelar!... e de súbito, fitando-o divertida, desafiadora: olha lá, e também podíamos casar, não fujas com a cara, casar sim, porque não?... em vez de duas casas estragávamos só uma… no cimo da Arrábida, lá bem no alto onde há uma clareira e eu que sei onde fica essa clareira!...agora já nem tínhamos de “publicar os banhos” nem nada... só íamos ao notário “firmar a assinatura”, pagar o “estacionamento”, e depois fazíamos assim uma boda campestre…em Maio, tinha de ser em Maio, eu punha giestas e era uma Maia e tu eras um Maio Moço… mas também não tinhas de ser um Maio Moço, podias ser outra coisa!... até podias muito bem ser apenas tu, tu próprio, sim!...tagarelando... e depois, tu sempre a tagarelar, íamos ao cabo Espichel  atirar flores, não sei se seria lá muito adequado, muito”expectável”, mas íamos!…ou atirávamo-nos nós lá de cima… em asa delta claro!…e depois de uma pausa, suspirando, teatral: ”sempre dependi da bondade de estranhos…”, Blanche du Bois!... assim, torrencial, e ele desatou a rir enternecido − tem swing, nem sabe o  swing que tem…
Era ao fim da noite e a conversa a esgaçar a descoser, a “deslaçar”… a bateria arrumada lembrava-lhe um robot de braços cruzados (e ela corrigia:“de muco caído!”) ou um trem de cozinha desconchavado (e ela:“com o pingo no nariz!”) e o contra-baixo, no pé de descanso, era assim um senhor pequeno para ali encostado na penumbra, no meio de uma sala de fumo…mas o sax tenor levantara-se e parecia rejubilar replicando ao pianista, ali às voltas, porfiando em improvisar a partir de Le pont d’Avignon, e era assim um cavalinho de vénias musical com um cachimbo de volta reluzente… gente que ia subindo e saía para a Praça da Alegria.
−“…sempre dependi da vontade de estranhos…”, repetiu devagar, pensativa, ”o que há de errado em mim?”…sabia aquilo de cor, era do seu trabalho (de “intermitente”! acentuava)… Avignon, gostava tanto, no palácio dos Papas, no palco grande… ou então andar, vadiar pela cidade no meio das troupes, no meio do teatro do mundo…esperando pelo Godot com o Vladimir e o Estragão no meio das Mãe Coragem, das Senhoras Carrar…dos Peer Gynt  das Gaivotas  dos  Sganarelos… dos Pantalone, dos Scapino,  dos  Peppe-Nappa... o Ferruccio Soleri este ano vai lá estar com o Piccolo Teatro de Milão, a fazer o Arlequim mais uma vez, deve ser!… gostava tanto um dia de fazer  commedia del’arte…aprender a safar-me com aqueles truques todos do Scapino, cabriolar até me doer tudo com as tropelias do Peppe-Nappa…não tinha de ser em Avignon, nem eu teria essa sorte, mas podia muito bem ter essa sorte!...podia muito bem, não podia?...  olha  lá, aquilo do Charlie Parker é mesmo verdade?
− É, é mesmo verdade, bastava tocarem-lhe no ombro!
Ficou olhando, pensativa, e depois disse: eu devo ser um pouco assim, não devo?... sempre tão longe de tudo, tão por fora de tudo, a juntar as pontas…mas basta tocarem-me no ombro...Às vezes parecia ir para muito longe e levava-o com ela e ele ficava esperando a olhá-la, o que é que vai sair dali…e tanto podia sair dali um cãozinho cheiriscando-lhe o pescoço, como um guiso numa coleira, como uma bailarina contrafeita numa caixa de música, como uma senhora com lorgnon inalando rapé, como um pinguim Charlot, como um Arlequim com os sonhos trocados… mas às vezes só dizia palhacinho palhacinho, e ficava triste. E acendia um cigarro!
Então o pianista levantou-se, colocou meticulosamente um pano de flanela sobre o teclado e depois fechou o piano.
− Faz-me um desenho!...
− Do Charlie Parker ?
− Não, um desenho! Faz-me um desenho!...
                                               
Faz-me um desenho! pedira-lhe então, um fio de amuada ternura na voz, faz-me um desenho – a penumbra sonora do Hot Club  ao fim de uma noite. Tinham acabado de discorrer sobre seduzir e cativar, sobre os vampiros da solidão que habitam as grandes cidades e porque viera ao caso, de rosas e de raposas, e da responsabilidade imprescritível por quem cativamos; e de como Saint Éxupéry desaparecera, sem deixar rasto, sabe-se lá se para o planeta do seu principezinho, sabe-se lá se numa nuvem de nostalgia (numa trip de nostalgia! corrigira-o sorrindo) pensando na casa de família que acabara de sobrevoar. Depois ficara calado como se tudo aquilo de tão repetido, de tão nos confins de um outro tempo ou do plano geral de uma outra expectativa, o tivesse fatigado até ao insuportável – ou porque já não acreditasse ou porque tivesse percebido que talvez tudo não passasse afinal do obscuro trabalho de uma qualquer faculdade escondida, um pouco “glandular”, diria, uma espécie de “secreção” oculta, que se fosse gastando como a memória ou o discernimento...
…faz-me um desenho! o lábio amuado, o dedo às voltas na beira do copo…“déssine-moi un mouton” lembrara-se então e respondera qualquer coisa sem jeito, a derivar, qualquer coisa de risível, de definitivamente  desarmante: o alvitre sem graça, a assobiar para o lado, um pouco a destratar: mas não há já desenhado?... Não que se comprazesse nesse desabrigado jogar às escondidas, mas depois de tanto, e tão sem jeito, se ter confiado às cegas, remetera-se ao afecto tranquilo de uma hospitalidade calma que não ateasse fogos demasiado altos para não semear mais devastação e decidira, quase sem premeditação, manter-se comedido na ternura e na mágoa discreto quanto pudesse – talvez não tivesse o talento de viver, nunca decerto lho haviam ensinado, essa vigilante capacidade de captar o instante fugidio na desapiedada geografia do tempo. Ou talvez se tivesse habituado, cedo demais, a ser uma pessoa demasiado sozinha.
− Faz-me um desenho!...
…moderadamente “bipolar”, brincava, entre tagarela e ensimesmado, prof. educação visual/”optometria fina”, sofrível amanuense do que quer que fosse com o pecadilho das Humanidades que sai para tomar café, árbitro de elegâncias, infindável palrador de trivialidades… e continuava: “às tantas” agnóstico, quanto baste…cavaleiro andante “precário” a recibo verde, a código de barras, a banalidade consumada, sem tirar nem pôr… uma dor de alma!.. ironizava por vezes consigo próprio… Depreciar-se, mesmo se sorrindo com bonomia, era uma maneira que achava pouco decente, no mínimo pueril, de suscitar o protesto, a contradita… uma estratégia medíocre, um pouco obscena, diria, mas a que amiúde condescendia, como que a um pequeno e secreto prazer inocente – a urgência recorrente, no fundo, como uma pulsão que não controlava, de se conferir, de se ir aferindo no conceito sempre a variar dos que mais amava.
− Faz-me um desenho!...
Lugares…coleccionara cheiros e perfis da cidade, ia a Paris, viajava por Espanha (outras vezes pelas Antilhas, ao canto da lareira, naquele grande cartaz da Cunard pendurado na sala, num navio antigo chamado Aquitania − com um velho atlas e a National Geografic no colo…), metia-se no carro, um 2k a desfazer-se (não era um carro, era “um ponto de vista!”…esclarecia) ligava o Garbarek, voltava do Sul, estava sempre a voltar do Sul...
…no verão violento do sul demorava-se, ficava para abrir a casa, assistia à poderosa alquimia da cal libertando-a da pelagra tenaz dos bolores do ano, das sujidades escondidas onde não tinha chegado a mão diligente das pequenas limpezas, ao vagaroso encerar dos soalhos, ao minucioso arear dos cobres… à noite, os reposteiros afastados pelos dedos da aragem, o sono vinha enxaguado em muitas águas, humedecido de bela-luísa e perfumado pelo alecrim queimado das limpezas de verão… e na aragem chegavam rumores, cantares, vozes longínquas... pelas tardes mergulhava em pegos negros cujos cascalhos e altares de pedra conhecia como às suas mãos, no meio de silvados, de tojos, de salgueiros, de canaviais, habitados por lontras, fojo de cobras de água, trilhos de javalis, por sítios que tinham nomes antigos, Abráfema, Cortes, Água Derramada, Altavasca, ou mais antigos e mais longínquos ainda, Corte de Vicente Eanes, Corte do Gafo… apanhava túberas, ou silarcas, conforme, acompanhava com vinho de talha… crestava colmeias, cruzava montados e pinhais no endireito das flores, dos caminhos das abelhas, das linhas do vento que espalhavam a benfeitoria dos pólenes e vinha outro, “devolvido”, a voz cantada e a pele curtida, quase rude, “assilvestrado”…
…no inverno não saía, na casa de Lisboa punha-se a espevitar um fogo imaginário numa lareira simbólica (uma mentira, uma impostura: sem trempe, sem abano, sem panela de ferro, sem tenaz para as brasas, sem brasas onde assar o que fosse, sem registo, sem chaminé, sem pescoço de cavalo, sem nada!… e sem avó eterna na sua renda de bilros, sem avô eterno implantando a república… uma fraude, uma tristeza!...) uma lareira ampla a fazer de conta, que mandara construir ao fundo da sala e enchera de avencas e rosmaninhos e espigas de trigo maduro e de pinhas secas, porque precisava de “soleira”, de “lar”, dizia, porque precisava do “seu” chão, dos seus cheiros, dos cheiros do seu chão, e apresentava solenemente, enfaticamente, estendendo o braço: não é uma lareira,”ceci n’est pas une pipe”, mas a memória descritiva de uma lareira!… precisara de um lugar assim na cidade para se acoitar nas noites no inverno e deixar-se ir, a ouvir o vento, farejando no tempo, a espreitar a infância… (falta-me aqui um cão enroscado, ao alcance da mão…ou um gato no borralho…ou espreitando ali do friso da lareira, ao lado da braseira de cobre…mas também te falta uma Harley Davidson para dares a volta ao mundo…), voltava ao Camilo, a Cervantes a Tolstoi, ao seu Tchekov, lembrava-se da guerra, mudava de casa.

Às vezes mudava de casa. Morava agora num arrabalde de filme italiano, abrigos de fórmica com anúncios preto e branco, graffitis, semáforos apagados, canteiros de salva ressequida, onde de manhã se metia num autocarro para a cidade a sentir-se dentro de um  filme de Antonioni – num prédio demasiado alto, batido pelos ventos de todos os quadrantes, onde cultivava, a desprazer, uma renúncia elegante, um tanto fingida. De Almada retirara a frase do auto-retrato “nem pessimista nem optimista, não há mal entendidos entre a vida e eu” e enfeitava-se com ela, sem grande convicção, como quem põe luto ligeiro, e depois detestava-se por isso. Amava em Tchekov a violenta melancolia sem idade, o humor sem resíduo, e tinha um retrato de James Dean na parede por debaixo de um poemeto de Tagore em espanhol, encaixilhado em ouro velho, “si de noche lloras/por el sol/no veras las estrellas” - de Lea, num seu aniversário, um subentendido por onde nunca quisera ir  - e conservava, desprezando-a um pouco e por não saber o que pensar, a meia impostura  do “Baiser de l’Hotel de Ville” que mandara emoldurar, como quem conserva a fotografia de um amigo mentiroso. Oferecera-lho uma estrangeira de “curta permanência” que conhecera em Lisboa “a fazer a revolução”, que é como diz “a fazer o Chiado” (que acenava de longe, luminosa e dispersa, vagamente trotsquista, como então se usava… uma mulher à janela…), que lhe mandava de Paris cartas com luas impossíveis e por quem estivera vagamente apaixonado. Gostava de ouvir Tom Waits em 9th Hennepin, não percebia metade mas do que percebia bastava-lhe e não concebia, desde Bogart, que se pudesse falar americano de outra maneira. Mas mantinha uma tenacíssima fidelidade ao Concerto de Colónia de Keith Jarret que ouvia na varanda, no verão, diante do luzeiro longínquo de Lisboa, acompanhando com o olhar os aviões que desciam para a esquerda, sempre para a esquerda, como zangãos de ouro púrpura rasantes no papel de seda da noite. Podia ouvir Keith Jarret horas seguidas, enquanto passava as mãos pelos cabelos e olhava os aviões, com uma aterradora melancolia.
…(déssine-moi un mouton!) a deriva recente (e incompetente!) no álcool, regular mas sem conversão, de que não retirava propriamente prazer ou euforia – uma prática sem “praxis”, ironizava – amparava-o no desprendimento e amolecia-o até a um lirismo urgente, difícil de suportar. Então vinha para dentro, fazia café, metia a roupa na máquina. E pensava que talvez fosse uma sorte se morresse cedo – e que nunca iria à Austrália!… mas já mau não seria se a grisalha dos anos o não punisse em demasia, lhe não envelhecesse sem remédio o desabrido coração…
…mas que desabrido coração? corrigia logo, a emendar a mão, “caindo em si” − o melhor sítio onde podia cair, dizia… irónico, áspero, eriçado: olha lá meu bem, tu tem mas é juízo! juízo e contenção…e respeito! a lamechice galopante mata mais, podes crer, do que a “hemoptise sentimental”…mais de ridículo, percebes?... mas enfim, há sempre a dietética, o retiro termal, o cursillo macrobiótico (zen!), os anti-oxidantes, a meditação transcendental, a Senhora d’Aires e, no limite, as benzodiazepinas e, um dia destes, o testamento vital...mas vê lá, tem cuidado!...

Sem surpresa e ao fim de muito tempo, aprendera que estar sozinho podia ser também uma espécie de “vocação” tardia – preguiçosa e laica!…ao domicílio, brincava! – fruto de um qualquer mal entendido que persistira, e consistia já e apenas, numa conformada gestão corrente do “esconderijo”, um deixar andar que andava por si: a desencantada consolidação de um território que a caprichosa conjugação de mil acasos não permitira que partilhasse. Tudo o que não planeara e onde, ainda hoje, o surpreendia ter afinal interferido tão pouco… mas decerto uma circunstância menor: com um desvelo antigo confiava-se aos amigos para quem, na precária contabilidade dos afectos, se sentia sempre um pouco devedor – uma cidadania dos afectos, proclamava, uma espécie de afinidade electiva alargada, em construção permanente, com chegadas e partidas, fidelidades e deserções…

− Faz-me um desenho!…

Pensava agora, com uma urgência que o sufocava, em qualquer coisa de muito preciso, de muito depurado, que retirasse da mágoa alguma sincera contrição, alguma ágil graciosidade conciliadora - um sorriso contrito em fundo de casa branca com rosas vermelhas. Pensava nisso enquanto descia a cidade, flutuando na noite, o passo vacilante e o olhar disperso em S.Pedro de Alcântara, rasando a silhueta das cabinas de banda desenhada do elevador da Glória imobilizadas no cimo da calçada, emergindo do vapor branco dos candeeiros açucenas velhas − música ao longe, silêncios que já não “ouvia”, respirações, rumores que o confundiam, fiapos de luz, dédalos de súbitas sombras que não decifrava – ao fim de todo este tempo de dieta e “reclusão”, começa a sentir-se um intruso, um estranho nestas ruas, um “turista” visitando uma noite antiga…

…tempo houve em que, na deriva cega das noites, partira à aprendizagem dessa cidade de imprevisíveis disfarces, de pacientes rostos inquiridores vigiando por detrás de janelas baixas, vidros de musgo e azebre, ao longo do silencioso tecer dos carris dos eléctricos por ruas de granito. Ou se detinha, tacteando-lhe a densidade e o contorno, rabiscando nos adormecidos quartos de hotel ou pelos sonoros bares do acaso, notas fugidias sobre um tempo breve que lhe era dado testemunhar - o ímpeto afluente da novidade ainda, um vago desígnio por apurar, uma guerra longínqua por haver, que sabia estar a chegar, sem cuidar de tirar bem a limpo o que procurava, o que o trouxera ali – ele que nascera paredes meias com um quintal de bucho e madressilva, no meio de um povo solar, que sabia cantar – ou mergulhava, cheio de perplexidade, na coreografia escondida de uma outra cidade mais dissimulada ainda, que circulava por secretos lugares, expediente e relapsa, tolerada um pouco por negligência como cotão esquecido no bolso.

…e assim seguia com o seu desenho imaginado naquele rumoroso coração de penumbra, denso vitral de cinza e espanto e suspeição.

 Entrou num bar com reproduções de Delvaux, pareceu-lhe (mulheres sentadas numa rua de casas de madeira e um mar ao fundo), túlipas de luz açucarada, quinquilharias sem idade, cartazes anunciando espectáculos. Nesse ano Steve Lacy viria a Lisboa, vira-o uma noite em Paris, no Dunois, entre cerveja gelada e amigos e sandes de mortadela, tu es fatigué? perguntara-lhe Juliette travando-lhe o braço na Place Stalinegrado. Juliette de que só muito mais tarde viera a saber por meio postal ilustrado de As Cinco Estações–Teatro de Sombras de Lurdes Castro, ao tempo em Paris - um beijo e duas cerejas.
…Juliette, destinatária da vida, alegria somada! que gostava de Brassens e me travou o braço a saber do meu cansaço na Place Stalinegrado, vivia no Marais, Rue Saint-Gilles (ou seria Du Chemin Vert?). Viera do norte, no orvalho da idade. Duas tranças, duas sandálias, uma guisalhante alegria. Fazia café, adiantava o relógio. Caminhava pelo braço de Gabriel, pelo boulevard Housseman, que conhecia Jack Lang e vinha a Portugal pelo Natal. Apanhavam castanhas do chão de Paris. Ria com o queixo mergulhado nos joelhos e era um guiso, endireitava o pescoço, dava-se ares, e era uma gata persa. Um beijo, duas cerejas, um sangue, um nada…uma gata persa caída no chão de Paris.

− Vá, faz-me um desenho!..

(“déssine-moi un mouton”…à meia-noite se levanta o francês/ conta as horas, não conta o mês/ tem esporas, não é cavaleiro/ tem serra, não é carpinteiro/ tem picão, não é pedreiro/ cava a terra, não ganha dinheiro… a avó eterna lá tão longe, no seu cadeirão de vime com gavetinhas, no seu avental de riscado, nos seus óculos pequeninos de tartaruga, na sua renda de bilros…o avô eterno folheando a Ilustração Portuguesa, implantando a República...)

…subitamente amolecido como se a um marulhar de conversas no meio do sono, dormitou um pouco quando, “olhos nos olhos”, Bethânia o atingiu em cheio e dobrou pelo meio como a um pugilista fatigado, na confluência do desconforto, do desapego próprio. Endireitou-se quando sentiu o empregado chegar, bebia sem precaução e pensou, com alguma bonomia auto complacente, que não tinha “tarimba”: para ali escangalhado de remorso e auto comiseração, tão vulgar… fancaria e da pior! ou nem tanto, ou nem isso… ( antes a morte que tal sorte!...) e o riso, ou lá o que fosse, mexeu-se numa remota zona obscura dentro de si como um pequenino animal adormecido que se tivesse voltado e isso devolveu-lhe alguma da perdida confiança e remeteu-o a uma postura um pouco menos vacilante, mais composta, mais caprichada, como se alguma esquecida ponta de dignidade ou lá o que fosse, o estivesse trazendo de volta de um limite qualquer… âncoras e redes brancas e lanternas e bóias vermelhas e clarabóias de latão com as cortinas meio corridas a toda a volta, e então,  risível mestre na “arte da fuga”,  imaginou-se em viagem num acolhedor e baloiçado bar de navio, como os que conhecia dos paquetes para África. Entre gente distante que cultivava uma ressequida nostalgia por portos de mar, luas brancas, amanheceres de névoa. De manhã, depois da papa de aveia e envoltos em algodão em rama, iriam para o deck e leriam Somerset Maugham com mantas escocesas sobre os joelhos, ao sol translúcido do norte. Mas depois pensou que aos grandes navios de carreira do tempo das viagens, que fundeavam em  rumorosos  portos  no meio do improvável, resvés ao sonho ou à aventura, mais não restava que o papel   pintado da costa à vista dos cruzeiros por mares de catálogo ou, em alternativa − presas para sucateiros que lhes abriam o ventre e os decompunham como animais pré-históricos − a apodrecer, sumptuosamente, em recônditas zonas abandonadas no labirinto dos grandes estuários, como as baleias velhas que procuram as praias baixas para morrer. E que o sonho, assim a cores e desdobrável, era já um precário lugar e não passava agora de um exótico bem de consumo, de um destino turístico a cartão de crédito, como qualquer outro, cotado em bolsa e servido, de preferência, em paragens adequadamente distantes e impecavelmente embalado no papel couché das agências…em atraentes brochuras com a indicação de preço, mordomias, previsões do tempo, peripécias do clima, duração e natureza do voo, charter ou outro − de um narcótico ligeiro, um benevolente fármaco de manutenção, que não convinha misturar com o álcool porque os efeitos podiam ser imprevisíveis…

…sendo que, como sabemos, a vida é um palco e Avignon, aonde não combinámos ir, fica na margem esquerdo do Ródano. Vai-se por Nimes deixando à esquerda Tarascon e a casa branca de Tartarin, “la troisième à main gauche sur le chemin d’Avignon”… como me ensinaste!…

(…porque o acaso é uma urdidura, um labor contínuo, um jogo com as cartas marcadas… porque chovia, porque perdera um comboio, porque entrara num teatro...
…quando as palmas serenaram e ficou como que um sussurro, um chover longínquo, um surdo bater de asas descompassado, ela foi recuando, recuando devagar, como se deslizasse, desfazendo a meia vénia, com a uma leveza de bailarina… depois olhou para o fundo da sala e, sem se voltar, curvou ligeiramente a cabeça e desapareceu no vermelho-sanguínea do pano de boca. Quando o teatro ficou vazio, os arrumadores, com lanternas de mão, passaram as filas da plateia uma a uma…depois saíram e ficou tudo às escuras.)

− Faz-me um desenho!...
− Jam, Jazz after midnight − Jam Session!... não se traduz!...

− Sempre quis ir a Avignon…

Casimiro Branco