“A música de jazz é uma
inquietação acelerada”
Françoise Sagan
(Para a Luísa)
(…porque chovia, porque perdera o último comboio, porque na
gare havia um cartaz e entrara num teatro, podia estar agora a lembrar-se daquela
noite no Outono como se numa fotografia antiga que tivesse emoldurado a talha
dourada e veludo vermelho-sanguínea: levemente inclinada no proscénio de um
teatro à italiana num final de espectáculo, o cabelo apanhado, um vestido preto
comprido com uma gargantilha, os braços caídos ao longo do corpo numa meia
vénia a desfazer-se…meio debruçada para o fogo-fátuo dos aplausos num final de
terceiro acto, meio fechada sobre si própria...e não olhava para o público!...
Fora sempre das coisas que mais o comovera, esse momento do
actor quando, curvado para os aplausos, é todo ele embaraço, pudor, fragilidade
e contingência… não é já a personagem que deixou pendurada lá atrás a olhá-lo,
enigmática, no espelho do camarim, quando o pano caiu, ainda que se mantenham
os adereços e o figurino, mas também não é ele próprio ainda aquele que, com
gravidade, se curva à boca de cena… nesse caminhar indeciso entre personagem e actor,
nesse desfazer, na tensão desse duplo, nesse entreacto silencioso jogado à luz
crua da ribalta na terra de ninguém do proscénio, o actor é só a bondade
desarmada da gratidão…
A última coisa que guardava dela era a memória dessa bondade
– dessa meia vénia a desfazer-se…)
…durante algum tempo ainda voltei lá, mesmo quando depois fui
viver para a Praça das Flores − sempre aos sábados, como um ritual: café da
manhã na Cister, o 24 na Politécnica…descia no Arco do Cego mas não encontrava ninguém!
Avistava era sempre aquela prostituta no passeio da Praia da Vitória, sempre
ali, de sentinela, aquela prostituta pequenina que cruzavas quando descias do
eléctrico na Estefânia… já não muito nova, com o cabelo amarelo, o vestido de organdi
amarelo às florinhas (dizias que era de tafetá!), quase sempre o mesmo vestido
amarelo − a “usucapião”!...
…sina de Lisboa, tudo aquilo foi sendo arrasado, a
Paulistana, o Monumental, o prédio do Anjo… o Monte Carlo desapareceu e com ele
o velho empregado dos últimos tempos, o “Fred Astaire”, aquele que nos levou a
viajar... tinha servido a vida toda nos paquetes da Colonial e caminhava agora como
que num bolero solitário, à cadência do mar, num improvável tombadilho
desarvorado… a bandeja cheia de cálices de conhaque, de aldeia velha, de
macieira, de chávenas de café, do que fosse numa mão e a outra volteando, solta
no ar, sapateando ao longo do café como se caminhasse a equilibrar-se sobre uma
ponte pênsil…ainda cai à água! brincavas, e um dia caiu: homem ao mar!... chamavas-lhe
Fred Astaire e gostava de contar coisas das viagens, das tempestades, dos embarcados
nos paquetes… nas horas tranquilas do café, ao fim da noite, cruzava
sorrateiramente o atlântico para, navegando pelas Bahamas, desembarcar num
amanhecer luminoso, de linho branco e panamá, na Havana de Fulgencio Batista (a
única que conhecera!), para ir a “um certo sítio”… lugares que só conhecíamos dos
mapas ou dos livros do Hemingway ou dos filmes do Hawks: Martinica, La Guaira, Curaçau, nas Antilhas
Holandesas… cruzando todo o mar das caraíbas para desembarcar em Caracas, navegando
para o Recife, o Rio e Buenos Aires… Fred Astaire descendo em cada cais
“acostável” da linha das Américas, do Caribe ao Rio da Prata e entre dois
meridianos, para ir a um certo sítio, para se “desobrigar”… sempre elegantíssimo,
flor fresca na lapela, de linho branco e panamá…
(…às vezes estou ouvir o John Coltrane ,”I'm old fashioned”,
e vê lá! dá-me para entrar na Zara, sabes, aquela Zara que meteram dentro do
Monte Carlo, só crianças e roupa de senhora… ponho-me para ali a mexer nos topes e nas camiseiras e nos collants
de viscose, chega sorrateira a menina, posso ajudar? e então arrisco, atrapalhado, a salvar a face, que quero
ver meias, soquetes de licra… por me parecer o mais inofensivo, o mais consensual
e unisexo, sou eu a dizer!... a menina sorri logo às “soquetes”, e enquanto não
leva dali o sorriso e não volta já sem o sorriso e com a caixa das licras, fico
a olhar para aquilo tudo a tentar perceber, a encaixar-me no puzzle dos tempos…
no balcão da menina, que entretanto voltou com outro sorriso que tinha guardado
lá dentro, vejo a “Castaffiore” acabada
de chegar da Defensores de Chaves já na groselha e a fazer palavras cruzadas… desvio
logo o olhar do decote da menina porque a Castaffiore está mesmo por cima do
colo do pescoço dela e o copo da groselha no meio das “saboneteiras” do
Vinicius, desvio o olhar para não ser mal interpretado, não vá a menina pensar…e
então são as nove da manhã e ali na mesa mesmo ao lado da Castaffiore, a criada
do senhor coronel sentou o senhor coronel que vem todo escanhoado do barbeiro lá do fundo, de junto dos
bilhares, e fica ali a folhear o seu jornal e a tirar azimutes até por volta da
uma, quando a criada chega para o levar pelo braço, de azimutes guardados
jornal lido e café resolvido…o Abelaira, o “Cabelaira”, continua a escrever
naquela mesa junto à grade branca de ferro forjado e a Cacilda traz hoje aquela
saia pendurona e uns sapatos marroquinos, nós todos a gabar os sapatos
marroquinos da Cacilda pena que lhe esconda os joelhos, o que foi consensual, até
a própria concordou, pudera!... tudo isso a passar-se na sala do meio que tinha
aqueles degraus e acabava num balcão de bar, foi onde o Fred Astaire caiu ao
mar daquela vez e onde está agora um manequim de madeira sozinho metido num
tailleur rosa chock…agora vou ter de sair porque não há meias de licra para o
meu número, a menina enganou-se e disse “não há meias de licra para o seu nome”
e sorriu outra vez e estivemos quase a ficar amigos, desde que ali estou já
sorriu três vezes, que tente na rua Augusta ou na loja da Garret…o que eu gostava agora era de continuar
ali a ouvir o John Coltrane, “I’m old fashioned”, junto ao tailleur rosa chock
solitário e à menina das saboneteiras, o resto da tarde, era do que eu gostava!...
mas tenho de sair e então contorno o sr Manuel, ali de cócoras profissionais, o sr.Manuel engraxador e
vinhateiro, que nos põe os dois pés a brilhar quase ao mesmo tempo, então sr
Manuel? cá estamos… sr Manuel, sou eu a seguir? e o míldio sr Manuel?, e o
oídio, a traça das videiras?... agora
foi-nos logo morrer na aldeia da Beira, de velhice e avc, quando reparava um
motor, então, sr Manuel, isso faz-se?... cá estamos!...ao sair evito o Pacheco e tropeço no Abelaira, mais um bocadinho
acabavam por ir chegando todos e inundavam a Zara e ficava assim uma vernissage
ou uma assembleia geral dos inválidos do comércio, mesmo o Zé Gomes Ferreira, lá
mais para o fim da tarde, finalmente de ténis e com umas calças sovadas de
bombazina…)
…todos assim “ao desamparo”, numa espécie de ociosa
orfandade: órfãos relutantes, uns dos outros e dos cafés do Saldanha…
… o Monumental
esventrado, uma dor de alma!... olhávamos para tudo aquilo como quem contempla uma
catástrofe: o que restava de um patamar, o labirinto dos corredores, as
janelinhas do projeccionista, os nichos dos camarotes, a cantaria ainda de pé da
porta dos artistas (a Laura Alves a deixar-se morrer!)… os operários lembravam
hienas azuis a mordiscar com os martelos pneumáticos naquela carniça toda…quarteirão
do Convés, do Porão da Nau a cair aos bocados − ”little Danzig!”, chamávamos
àquilo… a ficar uma cidade fantasma, uma cidade do pós-guerra…
(…a notícia a chegar num dia estranho, gelado e luminoso… um
dia de palavras breves, de olhos embaciados, persianas corridas…razões de força
maior… enganei-me tanto, a vida afinal não é nada do que estava à espera… não
tem nada a ver!…mas também, sem ensaio geral, não há como corrigir
as marcações… que tinhas deixado uma carta!)
…tudo a desaparecer, como se um tornado, um mau vento por ali…
mas já viste, a prostituta pequenina lá continua no seu passeio da Praia da
Vitória, naquele seu passo miudinho, na esquina dela… só ela a restar daquele
tempo, a sobrar daquele lugar… dizíamos: está ali há tanto tempo, agora se a quiserem
expulsar até pode invocar o usucapião… assim ficou a “usucapião”!… sina de
Lisboa que sempre teve esse destino, essa vocação: ou são os terramotos ou é a
cupidez ou é a providência cautelar ou é aquela lei velha do Salazar… sempre a
desmoronar, a cair aos bocadinhos, todos os dias... agora voltaram as hienas
azuis com os seus modos gritados, os seus martelos pneumáticos, os seus
capacetes, as suas gruas, as suas botas chapeadas…e a “usucapião” no meio das
hienas azuis… ainda lhe cai algum prédio em cima, penso às vezes…
…porque me estou a lembrar agora de tudo isso? talvez seja do
Cutty Sark, peço sempre Cutty Sark…não, não fiquei conhecedor a esse ponto: peço
Cutty Sark porque, tal como o Fred Astaire, gosto de navios, de bússolas, de
quadrantes, de sextantes, de astrolábios… de inclinómetros!... dessas tralhas
antigas do mar…e de pedir Cutty Sark no balcão dos bares quando anoitece, decidido
− eu que sempre fui um indeciso, um “indecidido”, como dizias − Cutty Sark, traga-me
Cutty Sark!.
…ou talvez seja do Charlie Parker, do bebop, do lirismo subido
do bebop… ou talvez ainda por gostar de tudo o que resiste, de tudo o que
desafia o tempo, que se atreve a um bocadinho menos de eternidade…de tudo o que
permanece! por isso gosto da prostituta pequenina, ali de atalaia, no seu
território…
− Charlie Parker! Começou por dizer, mal acabaram de tocar.
− Charlie Parker?
− Charlie Parker, “all the things you are”!... a Ella também
cantava aquilo… depois prosseguiu: Bird, o maior saxofonista de todos os tempos,
o maior saxofonista de que há memória, desde que há saxofonistas…uma espécie de
Mozart do Jazz (o mesmo Requiem, a mesma morte, e contudo…), morfinómano genial
!...fundou o bebop, no pós-guerra, com o Dizzie Gillespie (o bebop, só para virtuosos!), ele próprio
também uma vítima da guerra, sabias?
− Charlie Parker? Não, não sabia!
− Foi!... às vezes estava tão pedrado que adormecia enquanto a
orquestra continuava a tocar, adormecia mesmo! a orquestra “I’m in the mood for
love” e ele adormecido! a cabeça ligeiramente inclinada, como se estivesse a escutar…
− E a orquestra continuava mesmo assim? Sem o seu… Mozart?
− Continuava, continuava mesmo assim, sem o seu…Mozart! mas
bastava tocarem ao de leve no ombro do seu Mozart para ele imediatamente reentrar,
como se nada tivesse acontecido… nunca falhava!...
E continuou citando Charles Mingus, passou por John Coltrane (tens de ouvir I’m old fashioned, tens mesmo!),
Terence Blanchard (tens de ouvir He’s wearing my bathrobe, tens mesmo!) Ian Garbarek, que o acompanhava sempre nas viagens para o
sul, mas ela já não estava a ouvir:
− A Mafia ajudou os aliados na libertação da Itália e a conta
a pagar, a “folha de encargos”, incluiu, entre outras coisas, a entrada da
droga nos bairros negros das cidades americanas… foi isso que o tramou!...
Era ao fim da noite e a noite a “deslaçar”, como ela dizia… ficara
o pianista e o sax-tenor, alguém pedira e o pianista ”gentilmente concedera” e estava
agora a tocar Sur le pont d’Avignon e ela pusera-se a trautear, com leveza, Sur le pont d’Avignon/ l’on y danse, l’on y
danse/ sur le pont d’Avignon/ l’on y danse tout en rang… depois esqueceu o
pianista e disse:
− Gostava de ir a Avignon, gostava tanto de ir a Avignon, no
verão, quando é o festival… a Europa toda em inter-rail e nunca fui a Avignon,
e sempre quis ir…Mas como se não a tivesse ouvido, olhara para o fundo da sala,
para o mais longe que podia olhar e deixou cair, como uma moeda:
− Jam!
− Jam o quê? Ram Jam… black betty?
− Não, Jam, só Jam! Jota
A eM… Session, podes acrescentar.
− Jam Session?
− Isso!
− Jam Session então!... mas já estava longe, a fastar-se…
Jazz After Midnight Session, pensou ele mas também não o
disse.
L’on y danse tous en rond/ et puis encore comm’çà…sur le pont
d’Avignon/ la musique c’est si bon… voltou ao pianista, depois de um momento. Podíamos
ir de comboio, parávamos em Aix e…
− Já com o John Coltrane foi mais a heroína, o álcool e a
heroína, outro “patamar”…
− …as coisas que tu sabes, mas as coisas que tu sabes…e se
parasses para aí de tagarelar!... e de súbito, fitando-o divertida, desafiadora:
olha lá, e também podíamos casar, não fujas com a cara, casar sim, porque não?...
em vez de duas casas estragávamos só uma… no cimo da Arrábida, lá bem no alto
onde há uma clareira e eu que sei onde fica essa clareira!...agora já nem
tínhamos de “publicar os banhos” nem nada... só íamos ao notário “firmar a
assinatura”, pagar o “estacionamento”, e depois fazíamos assim uma boda campestre…em
Maio, tinha de ser em Maio, eu punha giestas e era uma Maia e tu eras um Maio Moço…
mas também não tinhas de ser um Maio Moço, podias ser outra coisa!... até podias
muito bem ser apenas tu, tu próprio, sim!...tagarelando... e depois, tu sempre
a tagarelar, íamos ao cabo Espichel
atirar flores, não sei se seria lá muito adequado, muito”expectável”,
mas íamos!…ou atirávamo-nos nós lá de cima… em asa delta claro!…e depois de uma
pausa, suspirando, teatral: ”sempre dependi da bondade de estranhos…”, Blanche
du Bois!... assim, torrencial, e ele desatou a rir enternecido − tem swing, nem
sabe o swing que tem…
Era ao fim da noite e a conversa a esgaçar a descoser, a
“deslaçar”… a bateria arrumada lembrava-lhe um robot de braços cruzados (e ela
corrigia:“de muco caído!”) ou um trem de cozinha desconchavado (e ela:“com o
pingo no nariz!”) e o contra-baixo, no pé de descanso, era assim um senhor pequeno
para ali encostado na penumbra, no meio de uma sala de fumo…mas o sax tenor
levantara-se e parecia rejubilar replicando ao pianista, ali às voltas, porfiando
em improvisar a partir de Le pont d’Avignon, e era assim um cavalinho de vénias
musical com um cachimbo de volta reluzente… gente que ia subindo e saía para a
Praça da Alegria.
−“…sempre dependi da vontade de estranhos…”, repetiu devagar,
pensativa, ”o que há de errado em mim?”…sabia aquilo de cor, era do seu
trabalho (de “intermitente”! acentuava)… Avignon, gostava tanto, no palácio dos
Papas, no palco grande… ou então andar, vadiar pela cidade no meio das troupes,
no meio do teatro do mundo…esperando pelo Godot com o Vladimir e o Estragão no
meio das Mãe Coragem, das Senhoras Carrar…dos Peer Gynt das Gaivotas dos Sganarelos… dos Pantalone, dos Scapino, dos
Peppe-Nappa... o Ferruccio Soleri este ano vai lá estar com o Piccolo
Teatro de Milão, a fazer o Arlequim mais uma vez, deve ser!… gostava tanto um
dia de fazer commedia del’arte…aprender
a safar-me com aqueles truques todos do Scapino, cabriolar até me doer tudo com
as tropelias do Peppe-Nappa…não tinha de ser em Avignon, nem eu teria essa
sorte, mas podia muito bem ter essa sorte!...podia muito bem, não podia?... olha lá,
aquilo do Charlie Parker é mesmo verdade?
− É, é mesmo verdade, bastava tocarem-lhe no ombro!
Ficou olhando, pensativa, e depois disse: eu devo ser um
pouco assim, não devo?... sempre tão longe de tudo, tão por fora de tudo, a
juntar as pontas…mas basta tocarem-me no ombro...Às vezes parecia ir para muito
longe e levava-o com ela e ele ficava esperando a olhá-la, o que é que vai sair
dali…e tanto podia sair dali um cãozinho cheiriscando-lhe o pescoço, como um
guiso numa coleira, como uma bailarina contrafeita numa caixa de música, como
uma senhora com lorgnon inalando rapé, como um pinguim Charlot, como um
Arlequim com os sonhos trocados… mas às vezes só dizia palhacinho palhacinho, e
ficava triste. E acendia um cigarro!
Então o pianista levantou-se, colocou meticulosamente um pano
de flanela sobre o teclado e depois fechou o piano.
− Faz-me um desenho!...
− Do Charlie Parker ?
− Não, um desenho! Faz-me um desenho!...
Faz-me um desenho! pedira-lhe então, um fio de amuada ternura
na voz, faz-me um desenho – a penumbra sonora do Hot Club ao fim de uma noite. Tinham acabado de
discorrer sobre seduzir e cativar, sobre os vampiros da solidão que habitam as
grandes cidades e porque viera ao caso, de rosas e de raposas, e da
responsabilidade imprescritível por quem cativamos; e de como Saint Éxupéry
desaparecera, sem deixar rasto, sabe-se lá se para o planeta do seu
principezinho, sabe-se lá se numa nuvem de nostalgia (numa trip de nostalgia!
corrigira-o sorrindo) pensando na casa de família que acabara de sobrevoar.
Depois ficara calado como se tudo aquilo de tão repetido, de tão nos confins de
um outro tempo ou do plano geral de uma outra expectativa, o tivesse fatigado
até ao insuportável – ou porque já não acreditasse ou porque tivesse percebido
que talvez tudo não passasse afinal do obscuro trabalho de uma qualquer faculdade
escondida, um pouco “glandular”, diria, uma espécie de “secreção” oculta, que
se fosse gastando como a memória ou o discernimento...
…faz-me um desenho! o lábio amuado, o dedo às voltas na beira
do copo…“déssine-moi un mouton” lembrara-se então e respondera qualquer coisa
sem jeito, a derivar, qualquer coisa de risível, de definitivamente desarmante: o alvitre sem graça, a assobiar
para o lado, um pouco a destratar: mas não há já desenhado?... Não que se
comprazesse nesse desabrigado jogar às escondidas, mas depois de tanto, e tão
sem jeito, se ter confiado às cegas, remetera-se ao afecto tranquilo de uma
hospitalidade calma que não ateasse fogos demasiado altos para não semear mais
devastação e decidira, quase sem premeditação, manter-se comedido na ternura e
na mágoa discreto quanto pudesse – talvez não tivesse o talento de viver, nunca
decerto lho haviam ensinado, essa vigilante capacidade de captar o instante fugidio
na desapiedada geografia do tempo. Ou talvez se tivesse habituado, cedo demais,
a ser uma pessoa demasiado sozinha.
− Faz-me um desenho!...
…moderadamente “bipolar”, brincava, entre tagarela e
ensimesmado, prof. educação visual/”optometria fina”, sofrível amanuense do que
quer que fosse com o pecadilho das Humanidades que sai para tomar café, árbitro
de elegâncias, infindável palrador de trivialidades… e continuava: “às tantas”
agnóstico, quanto baste…cavaleiro andante “precário” a recibo verde, a código
de barras, a banalidade consumada, sem tirar nem pôr… uma dor de alma!.. ironizava
por vezes consigo próprio… Depreciar-se, mesmo se sorrindo com bonomia, era uma
maneira que achava pouco decente, no mínimo pueril, de suscitar o protesto, a
contradita… uma estratégia medíocre, um pouco obscena, diria, mas a que amiúde
condescendia, como que a um pequeno e secreto prazer inocente – a urgência
recorrente, no fundo, como uma pulsão que não controlava, de se conferir, de se
ir aferindo no conceito sempre a variar dos que mais amava.
− Faz-me um desenho!...
Lugares…coleccionara cheiros e perfis da cidade, ia a Paris,
viajava por Espanha (outras vezes pelas Antilhas, ao canto da lareira, naquele
grande cartaz da Cunard pendurado na sala, num navio antigo chamado Aquitania −
com um velho atlas e a National Geografic no colo…), metia-se no carro, um 2k a
desfazer-se (não era um carro, era “um ponto de vista!”…esclarecia) ligava o
Garbarek, voltava do Sul, estava sempre a voltar do Sul...
…no verão violento do sul demorava-se, ficava para abrir a
casa, assistia à poderosa alquimia da cal libertando-a da pelagra tenaz dos
bolores do ano, das sujidades escondidas onde não tinha chegado a mão diligente
das pequenas limpezas, ao vagaroso encerar dos soalhos, ao minucioso arear dos
cobres… à noite, os reposteiros afastados pelos dedos da aragem, o sono vinha
enxaguado em muitas águas, humedecido de bela-luísa e perfumado pelo alecrim
queimado das limpezas de verão… e na aragem chegavam rumores, cantares, vozes
longínquas... pelas tardes mergulhava em pegos negros cujos cascalhos e altares
de pedra conhecia como às suas mãos, no meio de silvados, de tojos, de
salgueiros, de canaviais, habitados por lontras, fojo de cobras de água,
trilhos de javalis, por sítios que tinham nomes antigos, Abráfema, Cortes, Água
Derramada, Altavasca, ou mais antigos e mais longínquos ainda, Corte de Vicente
Eanes, Corte do Gafo… apanhava túberas, ou silarcas, conforme, acompanhava com vinho
de talha… crestava colmeias, cruzava montados e pinhais no endireito das
flores, dos caminhos das abelhas, das linhas do vento que espalhavam a
benfeitoria dos pólenes e vinha outro, “devolvido”, a voz cantada e a pele curtida,
quase rude, “assilvestrado”…
…no inverno não saía, na casa de Lisboa punha-se a espevitar
um fogo imaginário numa lareira simbólica (uma mentira, uma impostura: sem
trempe, sem abano, sem panela de ferro, sem tenaz para as brasas, sem brasas
onde assar o que fosse, sem registo, sem chaminé, sem pescoço de cavalo, sem
nada!… e sem avó eterna na sua renda de bilros, sem avô eterno implantando a
república… uma fraude, uma tristeza!...) uma lareira ampla a fazer de conta, que
mandara construir ao fundo da sala e enchera de avencas e rosmaninhos e espigas
de trigo maduro e de pinhas secas, porque precisava de “soleira”, de “lar”, dizia,
porque precisava do “seu” chão, dos seus cheiros, dos cheiros do seu chão, e apresentava
solenemente, enfaticamente, estendendo o braço: não é uma lareira,”ceci n’est
pas une pipe”, mas a memória descritiva de uma lareira!… precisara de um lugar
assim na cidade para se acoitar nas noites no inverno e deixar-se ir, a ouvir o
vento, farejando no tempo, a espreitar a infância… (falta-me aqui um cão
enroscado, ao alcance da mão…ou um gato no borralho…ou espreitando ali do friso
da lareira, ao lado da braseira de cobre…mas também te falta uma Harley
Davidson para dares a volta ao mundo…), voltava ao Camilo, a Cervantes a
Tolstoi, ao seu Tchekov, lembrava-se da guerra, mudava de casa.
Às vezes mudava de casa. Morava agora num arrabalde de filme
italiano, abrigos de fórmica com anúncios preto e branco, graffitis, semáforos
apagados, canteiros de salva ressequida, onde de manhã se metia num autocarro
para a cidade a sentir-se dentro de um filme de Antonioni – num prédio demasiado alto,
batido pelos ventos de todos os quadrantes, onde cultivava, a desprazer, uma
renúncia elegante, um tanto fingida. De Almada retirara a frase do auto-retrato
“nem pessimista nem optimista, não há mal entendidos entre a vida e eu” e
enfeitava-se com ela, sem grande convicção, como quem põe luto ligeiro, e
depois detestava-se por isso. Amava em Tchekov a violenta melancolia sem idade,
o humor sem resíduo, e tinha um retrato de James Dean na parede por debaixo de
um poemeto de Tagore em espanhol, encaixilhado em ouro velho, “si de noche
lloras/por el sol/no veras las estrellas” - de Lea, num seu aniversário, um
subentendido por onde nunca quisera ir - e
conservava, desprezando-a um pouco e por não saber o que pensar, a meia
impostura do “Baiser de l’Hotel de
Ville” que mandara emoldurar, como quem conserva a fotografia de um amigo
mentiroso. Oferecera-lho uma estrangeira de “curta permanência” que conhecera
em Lisboa “a fazer a revolução”, que é como diz “a fazer o Chiado” (que acenava
de longe, luminosa e dispersa, vagamente trotsquista, como então se usava… uma
mulher à janela…), que lhe mandava de Paris cartas com luas impossíveis e por
quem estivera vagamente apaixonado. Gostava de ouvir Tom Waits em 9th Hennepin,
não percebia metade mas do que percebia bastava-lhe e não concebia, desde
Bogart, que se pudesse falar americano de outra maneira. Mas mantinha uma
tenacíssima fidelidade ao Concerto de Colónia de Keith Jarret que ouvia na
varanda, no verão, diante do luzeiro longínquo de Lisboa, acompanhando com o
olhar os aviões que desciam para a esquerda, sempre para a esquerda, como
zangãos de ouro púrpura rasantes no papel de seda da noite. Podia ouvir Keith
Jarret horas seguidas, enquanto passava as mãos pelos cabelos e olhava os
aviões, com uma aterradora melancolia.
…(déssine-moi un mouton!) a deriva recente (e incompetente!)
no álcool, regular mas sem conversão, de que não retirava propriamente prazer
ou euforia – uma prática sem “praxis”, ironizava – amparava-o no desprendimento
e amolecia-o até a um lirismo urgente, difícil de suportar. Então vinha para
dentro, fazia café, metia a roupa na máquina. E pensava que talvez fosse uma sorte
se morresse cedo – e que nunca iria à Austrália!… mas já mau não seria se a
grisalha dos anos o não punisse em demasia, lhe não envelhecesse sem remédio o
desabrido coração…
…mas que desabrido coração? corrigia logo, a emendar a mão,
“caindo em si” − o melhor sítio onde podia cair, dizia… irónico, áspero, eriçado:
olha lá meu bem, tu tem mas é juízo! juízo e contenção…e respeito! a lamechice
galopante mata mais, podes crer, do que a “hemoptise sentimental”…mais de
ridículo, percebes?... mas enfim, há sempre a dietética, o retiro termal, o
cursillo macrobiótico (zen!), os anti-oxidantes, a meditação transcendental, a Senhora
d’Aires e, no limite, as benzodiazepinas e, um dia destes, o testamento vital...mas
vê lá, tem cuidado!...
Sem surpresa e ao fim de muito tempo, aprendera que estar
sozinho podia ser também uma espécie de “vocação” tardia – preguiçosa e
laica!…ao domicílio, brincava! – fruto de um qualquer mal entendido que
persistira, e consistia já e apenas, numa conformada gestão corrente do “esconderijo”,
um deixar andar que andava por si: a desencantada consolidação de um território
que a caprichosa conjugação de mil acasos não permitira que partilhasse. Tudo o
que não planeara e onde, ainda hoje, o surpreendia ter afinal interferido tão
pouco… mas decerto uma circunstância menor: com um desvelo antigo confiava-se aos
amigos para quem, na precária contabilidade dos afectos, se sentia sempre um
pouco devedor – uma cidadania dos afectos, proclamava, uma espécie de afinidade
electiva alargada, em construção permanente, com chegadas e partidas, fidelidades
e deserções…
− Faz-me um desenho!…
Pensava agora, com uma urgência que o sufocava, em qualquer
coisa de muito preciso, de muito depurado, que retirasse da mágoa alguma
sincera contrição, alguma ágil graciosidade conciliadora - um
sorriso contrito em fundo de casa branca com rosas vermelhas. Pensava nisso
enquanto descia a cidade, flutuando na noite, o passo vacilante e o olhar disperso
em S.Pedro de Alcântara, rasando a silhueta das cabinas de banda desenhada do
elevador da Glória imobilizadas no cimo da calçada, emergindo do vapor branco
dos candeeiros açucenas velhas − música ao longe, silêncios que já não “ouvia”,
respirações, rumores que o confundiam, fiapos de luz, dédalos de súbitas
sombras que não decifrava – ao fim de todo este tempo de dieta e “reclusão”, começa a sentir-se um intruso, um estranho nestas ruas, um “turista” visitando uma
noite antiga…
…tempo houve em que, na deriva cega das noites, partira à aprendizagem
dessa cidade de imprevisíveis disfarces, de pacientes rostos inquiridores
vigiando por detrás de janelas baixas, vidros de musgo e azebre, ao longo do
silencioso tecer dos carris dos eléctricos por ruas de granito. Ou se detinha,
tacteando-lhe a densidade e o contorno, rabiscando nos adormecidos quartos de
hotel ou pelos sonoros bares do acaso, notas fugidias sobre um tempo breve que
lhe era dado testemunhar - o ímpeto afluente da novidade ainda,
um vago desígnio por apurar, uma guerra longínqua por haver, que sabia estar a
chegar, sem cuidar de tirar bem a limpo o que procurava, o que o trouxera ali –
ele que nascera paredes meias com um quintal de bucho e madressilva, no meio de
um povo solar, que sabia cantar – ou mergulhava, cheio de perplexidade, na coreografia
escondida de uma outra cidade mais dissimulada ainda, que circulava por
secretos lugares, expediente e relapsa, tolerada um pouco por negligência como
cotão esquecido no bolso.
…e assim seguia com o seu desenho imaginado naquele rumoroso
coração de penumbra, denso vitral de cinza e espanto e suspeição.
Entrou num bar com
reproduções de Delvaux, pareceu-lhe (mulheres sentadas numa rua de casas de
madeira e um mar ao fundo), túlipas de luz açucarada, quinquilharias sem idade,
cartazes anunciando espectáculos. Nesse ano Steve Lacy viria a Lisboa, vira-o
uma noite em Paris, no Dunois, entre cerveja gelada e amigos e sandes de
mortadela, tu es fatigué? perguntara-lhe Juliette travando-lhe o braço na Place
Stalinegrado. Juliette de que só muito mais tarde viera a saber por meio postal
ilustrado de As Cinco Estações–Teatro de Sombras de Lurdes Castro, ao tempo em
Paris - um beijo e duas cerejas.
…Juliette, destinatária da vida, alegria somada! que gostava de
Brassens e me travou o braço a saber do meu cansaço na Place Stalinegrado,
vivia no Marais, Rue Saint-Gilles (ou seria Du Chemin Vert?). Viera do norte,
no orvalho da idade. Duas tranças, duas sandálias, uma guisalhante alegria.
Fazia café, adiantava o relógio. Caminhava pelo braço de Gabriel, pelo
boulevard Housseman, que conhecia Jack Lang e vinha a Portugal pelo Natal. Apanhavam
castanhas do chão de Paris. Ria com o queixo mergulhado nos joelhos e era um
guiso, endireitava o pescoço, dava-se ares, e era uma gata persa. Um beijo,
duas cerejas, um sangue, um nada…uma gata persa caída no chão de Paris.
− Vá, faz-me um desenho!..
(“déssine-moi un mouton”…à meia-noite se levanta o francês/
conta as horas, não conta o mês/ tem esporas, não é cavaleiro/ tem serra, não é
carpinteiro/ tem picão, não é pedreiro/ cava a terra, não ganha dinheiro… a avó
eterna lá tão longe, no seu cadeirão de vime com gavetinhas, no seu avental de riscado,
nos seus óculos pequeninos de tartaruga, na sua renda de bilros…o avô eterno
folheando a Ilustração Portuguesa, implantando a República...)
…subitamente amolecido como se a um marulhar de conversas no
meio do sono, dormitou um pouco quando, “olhos nos olhos”, Bethânia o atingiu
em cheio e dobrou pelo meio como a um pugilista fatigado, na confluência do
desconforto, do desapego próprio. Endireitou-se quando sentiu o empregado
chegar, bebia sem precaução e pensou, com alguma bonomia auto complacente, que
não tinha “tarimba”: para ali escangalhado de remorso e auto comiseração, tão
vulgar… fancaria e da pior! ou nem tanto, ou nem isso… ( antes a morte que tal
sorte!...) e o riso, ou lá o que fosse, mexeu-se numa remota zona obscura
dentro de si como um pequenino animal adormecido que se tivesse voltado e isso
devolveu-lhe alguma da perdida confiança e remeteu-o a uma postura um pouco
menos vacilante, mais composta, mais caprichada, como se alguma esquecida ponta
de dignidade ou lá o que fosse, o estivesse trazendo de volta de um limite qualquer… âncoras e redes brancas e lanternas e bóias vermelhas e clarabóias de latão com
as cortinas meio corridas a toda a volta, e então, risível mestre na “arte da fuga”, imaginou-se em viagem num acolhedor e
baloiçado bar de navio, como os que conhecia dos paquetes para África. Entre
gente distante que cultivava uma ressequida nostalgia por portos de mar, luas
brancas, amanheceres de névoa. De manhã, depois da papa de aveia e envoltos em
algodão em rama, iriam para o deck e leriam Somerset Maugham com mantas
escocesas sobre os joelhos, ao sol translúcido do norte. Mas depois pensou que
aos grandes navios de carreira do tempo das viagens, que fundeavam em rumorosos portos
no meio do improvável, resvés ao sonho ou à aventura, mais não restava
que o papel pintado da costa à vista dos cruzeiros por
mares de catálogo ou, em alternativa − presas para sucateiros que lhes abriam o
ventre e os decompunham como animais pré-históricos − a apodrecer,
sumptuosamente, em recônditas zonas abandonadas no labirinto dos grandes
estuários, como as baleias velhas que procuram as praias baixas para morrer. E
que o sonho, assim a cores e desdobrável, era já um precário lugar e não
passava agora de um exótico bem de consumo, de um destino turístico a cartão de
crédito, como qualquer outro, cotado em bolsa e servido, de preferência, em
paragens adequadamente distantes e impecavelmente embalado no papel couché das
agências…em atraentes brochuras com a indicação de preço, mordomias, previsões
do tempo, peripécias do clima, duração e natureza do voo, charter ou outro − de
um narcótico ligeiro, um benevolente fármaco de manutenção, que não convinha misturar
com o álcool porque os efeitos podiam ser imprevisíveis…
…sendo que, como sabemos, a vida é um palco e Avignon, aonde não
combinámos ir, fica na margem esquerdo do Ródano. Vai-se por Nimes deixando à
esquerda Tarascon e a casa branca de Tartarin, “la troisième à main gauche sur le
chemin d’Avignon”… como me ensinaste!…
(…porque o acaso é uma urdidura, um labor contínuo, um jogo
com as cartas marcadas… porque chovia, porque perdera um comboio, porque
entrara num teatro...
…quando as palmas serenaram e ficou como que um sussurro, um
chover longínquo, um surdo bater de asas descompassado, ela foi recuando,
recuando devagar, como se deslizasse, desfazendo a meia vénia, com a uma leveza
de bailarina… depois olhou para o fundo da sala e, sem se voltar, curvou
ligeiramente a cabeça e desapareceu no vermelho-sanguínea do pano de boca.
Quando o teatro ficou vazio, os arrumadores, com lanternas de mão, passaram as
filas da plateia uma a uma…depois saíram e ficou tudo às escuras.)
− Faz-me um desenho!...
− Jam, Jazz after midnight − Jam Session!... não se traduz!...
− Sempre quis ir a Avignon…
Casimiro Branco