quinta-feira, 21 de julho de 2011

UN IMENSO ADEUS

«Um certo mal-estar acompanha sempre as minhas recordações da Bélgica. Isso deve-se talvez a uma muito antiga recordação, infantil, cujos sentimentos indeléveis de furor impotente, de humilhação e de ódio que aí se acumulam roem verosimilmente, como uma lepra, todas as outras recordações possíveis da Bélgica. Atravessávamos a Bélgica, vindos de Haia, em 1939. A guerra ia ser perdida em Espanha e os governos democráticos apressavam-se a reconhecer o general Franco. Viajávamos com passaportes diplomáticos da República Espanhola e os empregados da alfândega e polícias belgas que tinham subido ao comboio olhavam esses passaportes diplomáticos, com um ar desconfiado e rabujento. Eram ainda válidos, esses papéis dum governo agonizante? Tínhamos o direito de atravessar a Bélgica sem visto de trânsito? Olhavam para os passaportes, olavam-nos. A sua voz era rabujenta, desdenhosa. Punham-se de acordo, perguntando a si próprios se não nos deveriam obrigar a descer do comboio, para referirem o caso às autoridades superiores. Os outros viajantes começavam a olhar-nos também da mesma maneira que os polícias. Afastavam-se nos assentos do compartimento de primeira classe, calavam-se pesadamente. C0mo se podia ser repubicano espanhol? Quanto a mim, sentia subir nas pulsações do sangue - misturado a um sentimento infantil de humilhação e de impotência - um ódio que nunca mais me deixou. Um ódio muito preciso, muito lúcido, de arestas que não se gastam, que me aquecia o coração. Via os rostos imbecis dos empregados da alfândega belga, dos polícias belgas, o seu uniforme dum verde infecto, os seus quépis ridículos, a sua suficiência adocicada e cortante. Claro, a partirdaí, sucedeu-me ter problemas com todas as espécies de polícias, e em circunstâncias muito mais delicadas do que nessa banal travessia contestável da Bélgica. Na verdade não há nada de significativo, nessa banal peripécia belga. Mas o ódio de que falo nasceu nesse dia, conservar-se-á quente até ao fim, e é talvez essa violência original que distingue e privilegia esta recordação doutro modo anódina.
Mais tarde, vinte anos mais tarde, saboreei por vezes a alegria íntima, irónica, de apresentar aos polícias belgas - nos comboios, no aeroporto de Bruxelas - os meus passaportes falos, que eles me devolviam com um meneio de cabeça, aprovador, e com bons-dias-senhor, obrigado-senhor! Não era que os polícias belgas dos postos de fronteira tivessem mudado muito. Continuavam com os mesmos uniformes, os mesmos quépis nojentos, a mesma atitude suficiente e grosseira. Continuavam a ser chuis, em suma. Mas eu estava bem vestido, aprendera a olhar para os polícias com bastante distracção e segurança, e tinha papéis falsos duma qualidade a toda a prova. Olhava os polícias belgas a dizerem-me bom-dia-senhor, obrigado-senhor, e faziam-me rir, aqueles miseráveis.»