terça-feira, 23 de março de 2010

ABRAÇO CIFRADO


POEMA À MÃE
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No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
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Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
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Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
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Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
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Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
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Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
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Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
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Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
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ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
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ainda oiço a tua voz:
. Era uma vez uma princesa
. no meio de um laranjal...
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Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
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Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
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Boa noite. Eu vou com as aves.
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EUGÉNIO DE ANDRADE