domingo, 25 de outubro de 2009

AS PALAVRAS SÃO DE ÁGUA


DOS CAFÉS, DA POESIA, DO EDUARDO ALEIXO
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Hoje não se nota, mas por aqueles tempos - em outro século e em outro milénio, até - nos anos de 1900 e lá vai fumaça (expressão descaradamente roubada ao Chico Buarque de 'Leite Derramado') eu era muito mais novo que o Eduardo Aleixo. Ainda só tinha um tímido buço e já o Eduardo passeava pelos corredores do Liceu, pelas ruas da nem sempre pacata cidade de Beja, só ou integrando ruidosas troupes académicas, e pelos cafés das tertúlias, a sua imponente bigodaça (negra, então) que seduzia o povo feminino do Liceu e adjacências e intimidava os lusitos da Mocidade Portuguesa.
Certo dia em que o meu buço me pareceu mais espesso, entrei na pastelaria 'Bambina', poiso de estudantada e de ociosos diversos para, em pose de mancebo pretensioso, tomar um 'Pirolito' (para os mais novos, um dado biográfico: o 'Pirolito' foi o pai da gasosa e avô da 'Seven Up') e fumar um cigarrinho 'Português Suave' (sem filtro!) que, minutos antes, tinha comprado por dois tostões no café do Zé Alho. E foi então que ouvi o empregado de mesa berrar para o balcão: «Saem quatro bagaços para a mesa dos poetas subversivos!». Olhei. E quem vi? O Eduardo, o Casimiro, o Arlindo e o Belard.
(Aqui, uma confissão tardia: aquilo dos 'bagaços' e dos 'poetas subversivos' impressionou-me tão favoravelmente que, a partir desse dia, troquei os 'pirolitos' pelos bagaços e tentei, mesmo, a poesia. E, se para esta o meu jeito se mostrou aleijadinho logo no primeiro verso, já no bagaço entrei com muita facilidade e cheguei a ter o estatuto de generoso consumidor).
Bem, 'andiamo':
Os poetas, pois. Marquei-os. Até hoje. Mas fiquemos pelo Eduardo. Reencontrei-o, passados anos - posso precisar o dia: 1º de Maio de 1969 -, no Rossio, mesmo em frente do café 'Gelo', e, depois de umas chouriçadas da polícia de choque, decilitrámos uns bagaços no café 'Palladium' e falámos, demoradamente, de poesia subversiva e do suplemento 'Juvenil' do 'Diário de Lisboa' onde ele colaborava.
A vida, ou mais exactamente a vidinha, com as suas guerreiras áfricas e ásias pacíficas encarregou-se das nossas andanças por estradas e veredas não coincidentes e a conversa interrompida à hora do fecho do café 'Palladium' só foi retomada em 2008, quando o Belard conseguiu reunir, à volta de uma mesa do café 'Nicola' (o Bocage, lembram-se?) os poetas subversivos, agora já ex-bagaceiros, mas sempre poetas, com o 'ex-piroliteiro' da bejense pastelaria 'Bambina', convertido pela idade em branqueado barbudo e consumidor de 'Água das Pedras', mas sempre fiel amante de poesia.
(Se é que não repararam, faço notar que há por aqui duas constantes que acompanharam uma geração: a poesia e os cafés - a 'Bambina', o 'Gelo', o 'Palladium', o 'Nicola').
E a conversa chegou, rápida e inevitavelmente, à poesia, ao blogue 'À Beira de Água' onde, em suporte digital (cibernices, modernices...), o Eduardo ia - e vai - finalmente, publicando as conversas com as musas que durante dezenas de anos apenas circularam clandestinamente por debaixo de olhos amigos (poucos, muito poucos, ao que sei).
Então, e só então, tomei contacto com a produção literária do Eduardo Aleixo. É verdade. Mais de quarenta anos depois da inconfidência do criado (era assim que se dizia) da 'Bambina' e do meu último 'pirolito'.
«Já me lixaste» (mas em português latrinário - vocês sabem o que eu quero dizer) foi a minha resposta ao convite do Eduardo para apresentar «As Palavras São de Água». Mas a amizade é um posto e aqui me têm na função e disposto a dizer-vos tudo, mas mesmo tudo, sobre a poesia do Eduardo Aleixo. Preparem-se para o discurso essencial: GOSTO. GOSTO E RECOMENDO. Disse.
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Quantas vezes nasci?
Quantas vezes morri?
Por que países nunca vistos
Semeei o meu silêncio,
O meu olhar de espanto?
Toca, Vivaldi,
Enquanto me lembro,
Sem esforço em me lembrar,
Quantas vezes comecei a minha vida,
Olhando para o mar...
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É um excerto do poema «Mas Toca Vivaldi».
E mais não digo. O resto perceberão com a leitura do livro.
Obrigado. E um gesto final: dá cá um abraço, Eduardo.
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(Texto lido na sessão de lançamento de «As Palavras São de Água»)