sexta-feira, 14 de agosto de 2009

UM PASSEIO NOS RESTAURADORES


...descer a Avenida, passar no Rossio, fazer o Chiado, nos Restauradores (não) vamos ao Eden.

Vinha de sair da Loja do Cidadão dos Restauradores onde pagara  facturas atrasadas, cigarro apagado, anoraque no braço e humor variável, a lembrar-se de um poema do O’ Neil, nem na porra do guichet acertamos, quanto mais na vida. A loja do cidadão, rés-do-chão  cave  sobreloja, tudo muito bem  embrulhado numa fachada mentirosa onde no alto se podia ler    teatro   eden/teatro   cinema,  baixo relevo alusivo e amplo lettering estilizado, e nada daquilo  era verdade!  Jardim de inverno com palmeiras, a elegante escadaria que dava para a plateia e agora não dá para sítio nenhum, ali  ao abrigo de uma salomónica lei qualquer do património que caucionara a amputação e assegurara  serviços mínimos, daí aquela fachada toda ela de alto a baixo mentirosa, no lugar onde  tinha sido a plateia do cinema Eden e para onde se subia de elevador e ascensorista – era assim que se chegava aos filmes no Eden, de ascensor e chauffeur fardado – a entrada, só por si uma prodigiosa antecâmara, um pré-genérico  de primeira, porque  bastava entrar no Eden e o cinema, o CINEMA,  estava logo a acontecer: no Eden não íamos ao cinema, entrávamos no cinema!... uma vez caminhara na pista nocturna de Casablanca no soalho da coxia central, a trautear as time goes by e a pensar no avião para Lisboa, Lisboa e Casablanca cidades geminadas, o início de uma bela amizade, por força de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, Rick e Ilsa despedindo-se junto a um avião com os motores ligados, Lisbonne Tanger Casablanca e um pequeno cavalo marinho desenhado na fuselagem... e com tudo isso e muito mais na cabeça, subira  no elevador da Glória, a fazer tempo. Almoços para o Bairro Alto, o contigente geral em progressão lenta, gente sortida, olhares, errâncias, taramelices, vagares; de salientar, homem à margem olhando abismado,  carapuço e alamares, peúga colorida e emblema do Oriental, mulher pregador flor-de-lis, sem lábios que se vissem (literalmente!), de headphones e saco de ráfia a tiracolo cheio de policiais da colecção Vampiro (a ir para a Barateira?), um homem sentado com um miolo de esquentador no colo, de olhos fechados e cabeça caída para trás, um homem encostado às cordas?, turistas outono-inverno um pouco deslocados, diria que ”assimétricos”, como  restos de colecção numa vitrine mal arrumada; lembrou-se do Armindo (“ai a vida que tu levas/ai pobre da rapariga que se deixou enganar”), o Armindo  a turistar enquanto descia para casa na rua das Taipas e ele a subir sem se dar conta, agora de anoraque vestido e de mãos no volante de descer do ascensor que subia, colado ao vidro da cabine, o movimento lento do elevador da Glória como se num  filme de grande produção, Lisboa acima: a cabine de banda desenhada  recuando para S.Pedro de Alcântara (ali era o Príncipe Negro, um night-club com uma pequena orquestra que tocava boleros), um sumptuoso travelling ascendente, uma elegante plongée a demorar-sea desfazer-se  lentamente sobre a fachada do cinema Condes e os  Restauradores,  a lembrar, sem ter nada a ver, aquele plano aberto sobre a cidade deserta pelo medo em O Comboio Apitou Três Vezes –  “the story of a man who was too proud to run” (dos cartazes).

 

Já faz tempo a fachada do cinema Condes não exibe o telão pintado que vestia a fachada dos grandes cinemas, já faz tempo Katharine Hepburn e Humphrey Bogart na Rainha Africana, os últimos de que se lembrava, arrumados ao desbarato  no bolor de um qualquer cemitério de telões, desaparecidos definitivamente da fachada do cinema Condes por cima da varanda sobre a avenida, aí onde os guarda-freios puxavam os eléctricos até ao ponto nove  dando em ir inventando  o andar a nove que, tanto quanto sabia, começara  lá mais para trás, logo depois do alegre espalhafato dos americanos da carris ao longo das ruas de Lisboa; flash-back, postal ilustrado em dimensão cinéfilo, diria! gostar de pensar Lisboa como a cidade dos eléctricos, o deslizar na máquina do tempo, os itinerários, as depredações e as escaras do tempo nas ruas da cidade; então, faz de conta que tilintantes eléctricos descendo a avenida, andores trepidantes com gente sentada de perfil e equilibristas tristes de mala a tiracolo dançaricando e picando bilhetinhos coloridos, pequenos salões iluminados na noite, relutantes guarda-freios fardados de castanho, assentos de palha entrançada, portas guarda-vento, lâmpadas Lumiar, sabonetes Ach Brito, o misterioso homem de preto  Porto Sandeman, no eléctrico que desce e  no letreiro luminoso por cima do Hotel Internacional na pequena Piccadilly do Rossio, passageiros debruçados na guilhotina das janelas espreitando de relance a sala de espelhos do café Palladium onde se podia ver sem estar olhando; close-up, mulheres pintadas aguardando, rouge, olhos fundos, pálpebras azuis, remechendo o açúcar nas chávenas de chá, voltando-se devagar numa sedução cansada, num meio sorriso entristecido; logo endireitando-se, dando-se ares, reinventando-se, fazendo tempo, morrendo por fazer tempo... morrendo por morrer, as aparatosas  mulheres pintadas de rouge e azul às mesas do café Palladium!... o eco abafado das bolas nas mesas de bilhar na sala avarandada do primeiro andar, um cheiro doce a café aquecido; subir o corrimão de latão trabalhado, varandim interior com homens encostados;  então, branca e vermelha  coladas no canto, bola difícil e Xavier balançando entre massé e tacada corrida, balançando e que Xavier! petrónio nas indumentárias e Xavier de sua graça, um caso!... descendo do lº bairro fiscal a Sapadores para os bilhares elegantes da Baixa, dândi fora de prazo, “pipi da tabela” entrado na idade, boquilha e laço de seda, sapato polido,mãos tratadas, unha de verniz, pontificando às três tabelas em tudo o que fosse cave ou sobrado de bilhares entre Palladium e Chave d’Ouro, engolindo abatanados que sobem com os cofrezinhos do açúcar pela escada de latão trabalhado, enquanto olha as mulheres pintadas, sentadas nos espelhos – labioso, dissimulado,  teria mais que contar do que a nau catrineta mas fica calado, diz que não pode, o emprego no Estado, o abuso de confiança, graceja que jurou a constituição de 33, assim... pela mobilidade, fiscal dos isqueiros (no mínimo!), suspeita-se, tabelando a compôr o orçamento... mas deixemos Xavier debruçado no feltro verde da mesa entregue ao dilema de como tacar as bolas coladas, e sigamos o menos manifesto senhor X, outro balanço, agora a fazer o favor de ir ao telefone, a sair apressado, a compor o chapéu entre o indicador e o polegar a lembrar um galã de filme italiano, Amadeo Nazzari podia ser; saias plissadas  pregadores alfinetes de gravata  boquilhas  telefones brancos; voo raso no passeio a tentar passar despercebido, abetarda de casaco aberto na pressa e no vento, fazendo-se de novas se interceptado por quem tentara evitar, de quem tentara escapulir descendo na sombra do passeio; expedito a saltar o degrau para o chafariz do Pirata, salta a pulga da balança que vai ter à França; passar figurinos, tecer  de enredos  e negócios de mesa de café; entrando de viés  pelo écran das sessões contínuas do cinema Restauradores, logradouro comum, terrenos apertados como os da tauromaquia (logo onde se foi meter!), a janela incandescente da cabine de projecção, a luz branca do comboio das sombras em sentido contrário; abetarda acuada a meia sala fazendo tempo e agacho (mestre Isidro, caçador e carpinteiro) saltando para o meio do filme a meio da tarde e de filme para filme como entre duas paragens; a mão (enluvada?)  que afasta a pesada cortina de veludo azul mesmo ao lado do Pamplinas Maquinista que agora faz prova de coragem, atenção redobrada (eu se fosse a ti não tinha querido saber, não me tinha  metido nisso fosse isso o que quer que fosse ou viesse a ser, eu bem te dizia!), faz meia volta e desaparece dissolvido na luz que cega (capotazo perfeito, magia ensaiada: driblar e sair jogando, só faltou aplaudir!),ao fundo Pamplinas segue imperturbável, tem uma missão a cumprir e o braço passado sobre os ombros do medo...( os meninos a correr e as meninas a aprender mais o  Amadeo Nazzari que se irá esconder...), voltar à rua e à fila sonora dos eléctricos na paragem do cinema Éden, cinema Éden que era também, afinal, um magnífico navio deco ancorado junto ao Palácio Foz; janelas redondas como  vigias, presumir as cadeiras de descanso e a noite lá fora, um deck e um  mar, talvez o cruzeiro do sul; recantos com cinzeiros de pé alto cromados, pequenas enseadas com maples de cabedal onde se podia fumar descansado, bar de tectos baixos  e balcão afável com a máquina de café dos quadros do Hopper, num chamado nighthawks; insólita a rajada das cadeiras da  plateia ao terminar da sessão, tata ta tata tatatata ta, como se um destroçar em ordem unida, lá onde é agora cave rés-do-chão sobreloja, conferia de novo, António Silva na fachada, Beatriz Costa, empregadinhos do Grandela  a caminho da parte de casa alugada no Bairro das Colónias,  chapéus há muitos  quase uma palavra de ordem, minha lã meu amor  uma eternidade depois; vendedores de gravatas,  línguas de seda  coloridas e pregão cantado, cauteleiros com boné de pala rígida e décimos de lotaria pregados no peito com alfinetes-de-ama, como velhos militares errantes de uma guerra esquecida, figurantes condecorados de uma guerra que ficara por fazer; e logo uma trégua, um compasso, um sossego bom, uma espécie de bem-aventurança devida, de doçura guardada e contudo, mas porém todavia, as adversativas todas, legionários com emblema na lapela, soturnos,  escanhoados a Pitralon, aparados a restaurador Olex, entrando e saíndo do café Aviz, segredando, inquirindo, passando palavra; a língua pequena da delacção a chegar com o dedo apontado, o lodo viscoso da  suspeição a alastrar, a enredar-nos, a tolher-nos os passos e um medo encolhido ao fundo dos olhos, uma culpa tia velha, uma velha culpa residente, tão familiar, tão natural que já quase não passamos sem ela... cinema Condes que agora deixou de o ser e o Odeon onde uma vez  passara um fim de tarde com Sarita Montiel, amado mio te quiero tanto/no sabes cuanto /ni lo sabras , o Éden que agora é aquela fachada mentirosa, a fazer de conta, o hotel por cima e a loja do cidadão por baixo, mais aquelas  palmeiras desoladas como espanadores de plástico  numa montra de drogaria, no passeio dos Restauradores quando se desce e depois  é o hotel  Avenida Palace que já teve melhores dias e até espiões ingleses...

Meimendro, acabara de subir uma rapariga com o cabelo solto e o vento e um vestido amarelo e a palavra entrou esvoaçando atrás da rapariga, meimendro, assim como faz a mosca  da visita (do que se havia de lembrar!), na pausa para os preceitos e as cortesias, os desvelos  na porta na frente que se abre para acolher a visita, as mais das vezes precede-a mesmo e voa  zumbindo e pousando pela casa toda antes de ir ao engano do açúcar ardilosamente espalhado na folha de papel  pardo e do voo cego para o fosso de vinagre do elegante apanha- moscas de vidro, mas enquanto voa e zumbe e poisa e voa e zumbe e poisa entre a pedra da mesa da cozinha e os pessegos maduros da natureza morta na parede, a garrafa de cristal com o licor de laranja e os pingentes empoeirados do lustre da sala, uma mosca a dar a volta à casa, dizemos vamos ter visitas e é afiançado, pela tarde há sempre alguém a bater às mãozinhas de ferro da porta da rua... meimendro, flor campestre, deitou-se logo a adivinhar, espreitando para dentro da infância por alturas do Largo da Oliveira, porque lá muito muito para trás, para aí numa manhã fresca de quintal com um poço uma nora e um tanque de rega, uma galinha a depenar num colo com um avental, laranjeiras em flor e um braçado de ervas junto ao peito de alguém que caminhava, mesmo lá muito muito para trás, alguma coisa se moveu. E foi logo apontar no caderninho de capa preta que tinha para respigar o que o cesto roto dos acasos do mundo ia deixando cair na maré vasa dos dias. E assim foi subindo para S.Pedro de Alcântara com a palavra mosca da visita apontada e atribuída, como se verá, meimendro, dois emes maternais, talvez a mais consoante de quantas o alfabeto, de mãe mar amor morte, mãemaramormorte, toda ela regaço, paixão, gravidade e leveza, rua do Grémio Lusitano acima, enquanto alargava o passo  na chuva miudinha, e quando chegar a vez de  abrir o dicionário  lerá, quase sem surpresa, “planta solanácea, medicinal (do latim milimindrum)”, o que dela relata o Candido Figueiredo, e vai pensar que  não há-de ser bem isso um meimendro, que há-de ter um jeito de se levantar da terra, uma flor que desponte, um cheiro, um ciclo, um tempo, e que se fosse mais precavido não se fiaria lá muito nisso de dicionários dizendo coisas tão irrelevantes sobre palavras tão remotas e substantivas, se fosse mais precavido e menos consoante, mais conforme ao seu natural e não se tivesse afastado tanto nem para tão longe, tão para fora de pé, não  precisaria de frequentar tanto os dicionários que são assim uma espécie de memorial ou de mostruários de retrosaria das palavras, para trazer de volta o que vai esquecendo. Mas por enquanto e à revelia dos dicionários, meimendro está destinada a ser uma rapariga com luz própria como aprendemos nas ciências geográfico-naturais acerca das estrelas, um longo cabelo a soltar-se na dança do vento e um vestido amarelo, um alarido  um fogo-preso, uma rapariga cassiopeia com um tal jeito de olhar que ele ali ficaria a descontar à eternidade que lhe couber, o tempo que fosse preciso...

 

E aqui chegado é como se, na ferrovia vária do seu viajar, tivesse mudado de bitola, não lhe estando nada a agradar o tom inesperadamente confessional que, suspeita com razões para suspeitar,  aquilo pode vir a tomar ou já tomou, a não saber muito bem como fora ali  parar nem como dali iria sair, aquela inesperada  dificuldade em meter a rapariga meimendro (cassiopeia) no avião para Casablanca e deixar-se  ficar em Lisboa, as time goes by,  Casablanca e Lisboa cidades definitivamente geminadas como já sabemos mas nunca é de mais lembrar  ( ele a dar-lhe e a crónica a fugir...), ele que só fora à loja do cidadão pagar  um gás atrasado e, enquanto esperava vez, se pôs  a olhar com detalhe aquele pé direito cheio de quadros luminosos e de cidadãos para baixo e para cima, insolventes ou desmazelados ou acumulando, não destrinçava, não distinguia bem, e a lembrar-se  do poema do O’Neil  porque não tinha a certeza de ter tirado a senha para o guichet certo e se não acertava nem na porra do guichet, a pensar em tudo e em nada e no que vinha à rede (a crónica a adornar), foi quando  se sentiu assim  como que a levitar, primeiro de mansinho e depois, subitamente, a vertigem a pegar-lhe pela gola do anoraque, ainda atribuiu a algum sobressalto da tensão ou às duas ginginhas no largo de S. Domingos ou à tagarelice desembraiada no  chafariz  do Pirata, derivado a (ti Manel da Lança, criado de lavoura) derivado a ter-se cruzado com um antigo companheiro das áfricas, mas depois viu que estava era a subir de elevador e ascensorista para as luzes da ribalta da pista de Casablanca  a meio da plateia do Eden, para  a tarde com a Sarita Montiel, a apanhar o eléctrico para o bairro das colónias e então deixou-se ir... o melhor agora  era mesmo parar quando ainda tinha pé, pensava ele que tinha, encher o peito de ar e dar umas braçadas dali para fora, e meter na cabeça por uma vez que falar de si era sempre mudar de assunto e o que tinha mesmo era de voltar depressa para o salva-vidas  do elevador da Glória que navegava  Lisboa acima, pôr-se a bom recato  (o sotaque indefinível do professor Florival, um velho bramane  goês sempre perfumado, a ensinar francês no meio do alentejo...) era mais seguro, para o meio  dos turistas assimétricos, para a mulher dos policiais, a mulher  dos headphones que subia com  os vampiros para a Barateira e que, não saberia explicar bem porquê, só devia dar mesmo ares a ela própria, a ajudar com o miolo do esquentador o homem encostado às cordas, para a rapariga cassiopeia (fogo-preso) que agora, sem nenhum pudor, diria  mesmo que despida de todo o pudor (ou vestida desta meia contradição nos termos?) titilava o telemóvel (titilava, digo bem!), lenta e despudoradamente e como que perdera a piada que tinha para ganhar uma outra que ainda não tinha nem seria  bem piada, antes um outro andamento, um andante con fuoco silencioso, fremente, diria que uma batida  assim como que mais nocturna e mais feita de noites longas vagabundas e de palavras adormecidas sopradas no ouvido, urgente entrar para o salva-vidas do elevador da Glória, pôr-se a bom recato (o professor Florival, um mistério eternamente a dar-se a cheirar, o cabelo luzente e os dedos enfiados nos anéis de marfim, fumando cigarrilhas francesas...) e  sair para fora daquela crónica que tinha tomado o freio nos dentes, que  claramente se tinha descontrolado, que a olhos vistos se desconjuntava, e lembrar-se que o vento não ajuda a quem não sabe para onde vai... eu não te dizia que  para  me atrever assim, como dizer, a cronicar, como alvitraste, mesmo sem pretensão, deveria antes ter praticado um bocadinho todos os dias para assegurar um nível, digamos assim, medíocre, que é como o Woody Allen  classifica a sua performance  de clarinetista (at Elain’s)... mal comparado, evidentemente!... e já agora, aqui para nós, mesmo sem gostar eu até ia escrever prestação em vez de performance mas não escrevi porque me lembrei do JM, vê lá tu, e da maneira tão particular e desfrutada como ele dizia prestação e transformava aquilo tudo numa piada, como  polia tão bem polida uma palavra assim tão sem brilho, prestação, a ponto de ficar uma luzida piada para aplauso!... nós sentados lá no Alentejo, o papel cavalinho com os desenhos do Pavia no meio dos livros  do Hemingway, no meio do pátio, no meio dos gatos, no meio dos discos do Paul Anka, no meio dos cálices de amêndoa amarga;  eu não iria conseguir, uma ironia muito peculiar a dele, quase intraduzível, para o que não chegaria o itálico todo, nem o bold nem o underline que o computador põe à minha disposição para dar à manivela da ironia assistida... aquilo era exclusivamente dele, do JM que, quando ouvia falar em prestação pensava logo era na prestação da casa!... sempre que oiço trocar desempenho por  prestação lembro-me do JM, vê lá tu, lembro-me sempre dele e daquela mania de fechar o casaco no último botão, dessas coisas pequenas, muito mais do que daquela vez  na Paulistana (estavas lá?), enfática e teatral, no limite da caricatura (o que não ia lá muito com a timidez e a reserva a que se obrigava...), a desproporcionada citação do Churchill “não há déspotas benevolentes!... e tudo a olhar!... nós sentados lá no Alentejo, ainda mal refeitos da tragédia de Munique que apagara meia equipa do Manchester, o grande Ducan Edwards, a elegância acabada com o número seis nas costas (daí para cá fomos sempre do Manchester, continuo a ser), o Relicário e o Tango à Media Luz no gira-discos no terraço da vizinha, a folhear o Diário Ilustrado, às voltas com os gatos e o assalto ao quartel de Beja e a ler o Charyl Chessman que aguardava no corredor da morte, o Salgari e o Erico Veríssimo, o Galvão  a “abrir o baile” no Santa Maria e o Palma Inácio, o nosso major Alvega (avant la lettre), algures pelos céus a mandar papelinhos insurrectos, e o Vd, nosso amigo “vespertino” e ardina improvável, “exaurido pelo peso da imprensa da tarde” (eu e o JM, brincando com ele) a acarretar jornais pela vila toda e a revolução a assomar no cerro do Cercal, o Vd a querer tudo armado e nós no Fitzgerald, o Vd a sonhar com o Cunhal desembarcando de traineira nos areais de Porto Covo e nós Terna é a Noite, o Vd a preparar-se e nós na Patrícia Joyce...vocês só lêem só lêem, porra, só lêem!... mesmo muito mais do que  da manhã na doca de Alcântara a  ajudá-lo a enfiar-se na banheira do  Ana Mafalda a zarpar para a Guiné, para Madina do Boé, de onde sabemos que já não voltou, muito mais do que isso, de coisas pequenas como abotoar o casaco  no último botão, dessas e de outras assim, de coisas sem importância nenhuma vê lá tu, e tenho tanta pena pá!... vai-se pela  Sarita Montiel e ainda se acaba no Joselito coração de ouro ou coisa pior... e já agora, que me lembre, o Odeon depois daquela entrada de leão com o  Stroheim  nunca mais passou nada de jeito, marmelada e art deco  ainda assim, debaixo daquele tecto  belíssimo em quilha de navio antigo e pau-brasil, no aconchego discreto das últimas filas quando o Joselito coração de ouro punha toda a gente a chorar – sabes lá,  um choro pegado, não direi convulso mas pegado, assim silencioso e cheio de lencinhos bordados, uma manada de vitelas desmamadas literalmente às mãos do coração de ouro, o pequeno roussinol...

... mas  rebobinando e voltando atrás, feitas as contas, por deixarmos passar os prazos, e isso tudo de deixar passar os prazos não é lá grande ideia e não é líquido que se  acabe sempre nos  braços da Montiel... feitas as contas, somando tudo muito bem somado e tirada a prova real e a dos nove, não andamos para aí todos, gerações atrás de gerações atrás de gerações, a pagar facturas atrasadas atrás de fachadas mentirosas, não andamos? e ora aí está uma bela meia  metáfora  à  la minuta  e um  pobre de um pensamento meio atilado e tudo – bonito serviço, agora é que me vão levar mesmo a sério e mandar Porca de Murça pelo Natal!... e acende um cigarro a pensar que este presente assim tão reverente, tão confinado, tão loja de conveniência, tão montra da Zara ao domingo à tarde, não pode ter lá grande futuro e, mesmo que o tivesse, toda a gente sabe que o futuro antigamente era muito melhor, como já dizia o Karl Valentim três quartos de século atrás... mas andamos para aí todos a pagar facturas atrasadas, não andamos?...

 E agora está a olhar para o Rossio lá em baixo, com o teatro nacional DMII com as colunas da fachada do Hospital de Todos os Santos, lá está!,isto das fachadas mentirosas é fatal, um desígnio nacional que devia ser acarinhado, que devia ser  dado nas escolas a partir da pré-primária... no  centro a  estátua do  senhor D.Pedro IV, criatura de resto estimável (vá conta lá a anedota pá, estás mortinho por contar a anedota...), a fazer-se passar por um qualquer imperador Maximiliano do México ( já cá faltava! não tens nada melhor para “gratinar” a crónica?) ao que consta comprada nas promoções  de uma qualquer fundição de Oeiras francesa, o que não era verdade mas depois também foi ficando sem ser mentira... de resto a coisa já fizera caminho suficiente para, com verdade , poder ser desmentida (repete lá isso!) o que aliás, à mesa competente do Snob, não passou pela cabeça de ninguém fazer: a coisa era tão engenhosa e ficara tão engraçada, tão rocambolesca, até metia fiacres na noite da Rocha do Conde de Óbidos, uma escuna francesa fundeada no Tejo e a Severa meio descomposta do quadro do Malhoa, a cantar para marinheiros franceses (o quê?)  imagino que  de pompon e tudo!... portanto não sendo bem verdade e já nem sendo bem mentira...(já vejo o elevador da Glória lá ao fundo!), non e vero ma e bene trovato (linguafone, trinta lições), o riso geral à mesa verde e entendida do Snob, ninguém a atrever-se a desmentir, também para quê, depois o senhor D.Pedro IV  tão lá no alto, tão inacessível, tão de pedestal, tão no meio dos pombos...  e assim tudo aquilo ficou uma espécie menor de coisa nenhuma, de aldrabice pegada em fado menor (ou fado carriche?) e as tubas clangor sem fim...

 ...pré-comprado? essa agora!...(ai a velha culpa tonta...) e enquanto, obsequiosamente, vira a carteira do avesso à procura do “módulo”, do “título de transporte”, para introduzir na ranhura do “obliterador” fica a pensar que com esta chuva toda e esta brandura quase tropical, talvez este ano os jacarandás venham a florir mais cedo ...

 

CASIMIRO BRANCO

(Nota do 'editor': Foram meses de insistência, mas consegui vencer a relutância do meu amigo Casimiro Branco e publicar esta belíssima crónica. Ganhámos! - eu e os outros leitores).

PM