domingo, 3 de maio de 2009

ROTEIRO SOLAR



ROTEIRO SOLAR



1.
estamos perto do princípio:
o dia nasce e tão provável;
contemplamos tudo, saudamos
o mar, no sol acendem-se
as fogueiras; dizemos
cedo pode correr-se
na areia, já é
a palidez reconhecível.



2.
agora o campo reverdece;
a erva tece já
o calor, o sustento;
na planície aberta das colheitas
os frutos comunicam a frescura,
e, na descida, é tudo
uma questão de febre
e de leveza.



3.
entretanto conheço a subida do corpo:
ó fria e plana, inerte
região calma do outono,
ó colina nervosa que ensombrece,
o deserto moroso do encontro;
agora os membros bruscos
que lutam e estremecem,
a macia incisão, o marejar
dos olhos e dos ombros,
a noite sempre ardente
das ribeiras sombrias do esquecimento



4.
sobre o vazio as aves aproximam-se
e em bandos
imobilizam-se umas e a janela
este espaço profundo entre cortinas.
estou ainda no fundo
do abismo; oh nada disto
sei que existe, e abro
o primeiro olhar
paralelo às paredes,
à possível falésia.



5.
o tempo tem a sua própria ciência
a sua própria determinação:
nem sempre (o tempo) é da coragem
fria
e vertical
dos olhos livres,
das mãos imaginadas.



6.
o mais, o que depois
só resta, é
a decisiva jornada
do que dispersa o sangue,
a caminhada antiga da angústia
pela praia contínua
o canto emerso,
processional;
de vastidão nocturna,
voz enorme e longínqua
que arrasta e
abandona
no alto muro tranquilo
a vida inacessível,
a quieta morte prolongada
de dor restituída,
o riso que se perde,
o dia que se guarda
e que se faz,
e nos transporta
a manhã retomada, que amanhece
todos os cantos da noite.



FRANCISCO BELARD


4 de Junho de 1981 (publicação)