«É tempo de findar; mas não cedo de mais, porque a noite afinal é-nos amável, quando a rua da vila é um rio gelado, quando os demos terríveis nos acordam na sombra, quando a planície ao longe soturnamente dorme, quando a lua acontece sem que o luar a sinta, quando o desejo dói, quando o ruído morre, quando há uns passos longe de quem já não caminha, quando uma gargalhada se rompe nas varandas, quando os homens nos deixam e a morte nos revolta, quando já não há quando, nem porquê, nem onde, quando as palavras ainda se nos gravam na testa, as frases dos poetas nos tombam sobre as costas, e um medo passa pelos olhos despertos que se põem à espera do silêncio no silêncio, esse ladrar de cães desde o fundo das trevas até ao nosso leito; como eles uivam, como erguem o focinho húmido escuro e entreabrem a boca mostrando os dentes brancos, como choram num rouco gutural, como lhes fremem as goelas atentas, como as longas orelhas se animam e a pelagem se torna mais luzidia e escusa e intocável a noite em que mergulham e se confundem mais, como a língua se lhes dobra, afogados no instinto da morte, a quererem avisar-nos de que vem vindo longe a tempestade, vem vindo grande e grassa, tanto que parece já perto e inadiável»