terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O MEU BAIRRO

Não foi por vontade de deus, foi por vontade dos meus pais: aos três anos de idade, fui viver para uma zona da cidade confinando com bairros de paisagem tipicamente salazarista - miúdos com fome, camisolas remendadas, calças rotas, pé descalço, vernáculo variado.
Sem carros nem pedófilos por perto, recebi carta de alforria com um paternal e  solene aviso: "Se chegas a casa a chorar, deixas de ir para a rua". Logo, logo não percebi, mas desconfiei que devia ser coisa séria. E era.
Na saída inicial e iniciática para reconhecimento do terreno e primeiro contacto com os indígenas, tímido ainda, fui confrontado com uma estranha forma de iniciar relações de amizade: uns sopapos, uns carolos, uns pontapés, o bibe rasgado. Foi o meu baptismo de fogo. (Visitas às freiras-enfermeiras do hospital para aplicação de 'gatos', nome carinhoso dos agrafes, e conserto da cabeça partida por pauladas ou pedradas, seria mais tarde, depois de acesas guerrilhas com pessoal de bairros vizinhos para expansão de zonas de influência ou em acções de retaliação por maus resultados desportivos nos jogos da bola muda-aos-cinco-acaba-aos-dez). As perguntas curiosas e os abraços vieram depois. Passei em todos os testes e fui admitido como membro de pleno direito do gangue dos capitães da calçada (não havia areia nem mar e o Jorge Amado só me apareceria muitos anos depois).
A recepção em casa é que não foi apoteótica: lamentos pelo (mau) estado do meu físico, pomada nas nódoas negras, álcool e tintura nos arranhões, ralhete pelo bibe rasgado e, o pior, ameaças de não voltar à selva. Aqui, estremeci. Mas logo me enchi de coragem e gritei: "Mas não chorei!". Foi a minha salvação. No dia seguinte estava na rua outra vez.