sexta-feira, 3 de abril de 2015

DE OUTROS

FERREIRA FERNANDES

Um homem que não é exemplo para ninguém

por FERREIRA FERNANDES
O neto possui aquela arte do frasear curto: "O Manoel teve uma grande vida", disse ontem. E não, não era a quantidade dos 106 anos a justificar a inveja que ontem inundou Portugal. Sendo a inveja o pecado menos confessado, talvez muitos não tivessem dado por isso. Eu dei. Ainda há meia dúzia de anos, saltou ele de um táxi de forma tão lesta que o invejei. "Até nisso...", roí-me. A questão é que ele chegou a velho e nunca foi velhinho, e foi mais do que centenário para parar de trabalhar aos 105. Tanta duração com cada segmento dela - da juventude a centenário - propiciando aos outros o azedume: "Sortudo..." Por ter tido um pai rico, o primeiro fabricante de uma lâmpada portuguesa. Por ter uma cidade com pontes de ferro e o Douro, e a sageza de lhe ver a luz e a amar. Por ser um diletante corredor de automóveis e, porque o irmão era melhor (Casimiro de Oliveira, piloto da Ferrari), ter optado por outros pódios. Por a cidade que lhe calhou ser a de Júlio Resende e de Agustina e ele ter sabido o que o granito molhado faz com isso. Por aos 30 ser belo como uma personagem fútil de Fitzgerald e guardar o olhar limpo para contar os miúdos da Ribeira. Por saborear a lentidão porque não se pode aviar uma nesga do Alto Douro. Por rodear-se de Deneuve e Piccoli e sentir-se neles a honra. Por colher honras que plantou com faina. Por não ser exemplo para ninguém, porque os deuses não são generosos. De vez em quando escapa--lhes uma vida assim, é o que é.
DN