quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

UM IMENSO ADEUS


«Um a um, em cadeia, os deputados eram deixados sair. Os apupos da multidão reacordada do relento, sem arredar pé, recrudesciam. Só era poupado quem erguia o punho direito, e mesmo assim.
Então vi sair Sophia. Estava de preto, ou assim me lembro. Avançou no seu tiquetear ligeiro, sem olhar, como quem vai atrasada a uma tarefa, a uma costureira, à Baixa. Como sempre. Não se lhe viam gravidade no semblante, nem susto. Apenas os sinais de um contratempo, uma maçada, sem sequer o puf, puf do nervosismo. Nem altivez. Saía dali, de um sequestro de horas, como quem tem mais que fazer.
Eu estava perto, mas não me viu, a compactez dos corpos a injuriar era impossível de atravessar.
Fascista, fascista!
E então aconteceu uma coisa que me pareceu miraculosa de tão arcaica, uma coisa do fundo dos tempos, quando os anfiteatros pungiam de dor, horror e pasmo diante das máscaras terríveis que apresentavam o rosto mais que o rosto.
A Sophia parou. Os que iam adiante continuaram, os que a seguiam juntaram-se a uns metros. Também devem ter sentido a aura de antiquíssimo pundonor das palavras naquela mente e naquele coração. As palavras naquele corpo frágil ocupado por uma herança comum e inatingível. As palavras viscerais de uma cultura denegada, mas imorredoira.
Podiam tê-la apedrejado.
Sophia parou e virou-se para a turbamulta. Nem indignação, nem cólera. E disse uma só palavra e teve um só gesto, parado. Cruzou as duas mãos sobre o peito, como quem leva as sagradas espécies a um moribundo, e disse
Fascista? Eu?
Os que estavam mais perto recuaram e calaram. Formou-se, ondulante em reverbero, um simicírculo de silêncio e respeito.
Sophia seguiu. O mesmo passo, a mesma ligeireza sem pressa. Parecia apenas um pouco mais alta.»
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(Do prefácio de Maria Velho da Costa)