quarta-feira, 28 de setembro de 2022

"DEVO À PROVIDÊNCIA A GRAÇA DE SER POBRE" (SALAZAR)

 "Mas sempre uma constante permanecia: a pobreza; os pés descalços por toda a parte; as roupas coçadas e rotas sobre os corpos. Eram os pobres, e pouca diferença faziam os pobres entre os Açores e o Alentejo. Na escola acudiam com as suas roupas de tecidos grosseiros e os pés descalços, ao nosso lado, ao lado dos meninos ricos e ricos eram os que tinham sapatos nos pés, camisolas quentes e almoço à espera em casa.

Conheci através da infância as diferenças que rasgavam o meu país. E a sua beleza rude e contida, que não se exibia aos turistas e não suportava enfeites. Os anos 50 eram tristes e austeros. Não sofremos os horrores da guerra nem tivemos as alegrias da libertação. Continuávamos, como se estivéssemos nos anos 30, a representar cenas estafadas das ditaduras europeias, cenas que Valéry insidiosamente elogiara no passado. Mas não havia agora mais lugar para hipócritas "políticas do espírito".

A escola no Alentejo ensinava para a vida toda a realidade das classes e toda a crueza das desigualdades: os meninos pobres olhavam para

nós com um misto de orgulho e de rancor e diziam uma frase que nunca mais esqueci e que guardei comigo: "tu não és mais qu"a mim!"

Mas eram esses meninos pobres que, quando a sua insubordinação atingia o grau que levava a chamá-los de "correços", eram levados da escola para o posto da GNR mais próximo, onde apanhavam as chibatadas merecidas, os "safanões dados a tempo" que preservavam a paz escolar.

O Estado, na cantina ao almoço, e a Igreja, na catequese ao lanche, alimentavam aqueles meninos e os professores, à parte os episódios dos "correços", tratavam-nos tal como nos tratavam a nós. Mas nós, os filhos do juiz, do diretor das finanças, do relojoeiro local, éramos os ricos. Nós gozávamos de um estatuto implícito que, se nos distinguia socialmente na vila, no espaço da escola nos expunha a uma difusa desconfiança da parte dos pobres, que se sobrepunha à natural camaradagem infantil.

Os nossos colegas ciganos eram discriminados porque eram diferentes; mas não eram, que me lembre, particularmente hostilizados, para além do desprezo que é inerente a toda a discriminação. Vestiam as mesmas roupas de serapilheira

esgarçada que usavam os pobres e desafiavam-nos, mas sem nunca nos assustar.

Quando volto ao Alentejo, a memória desse tempo de infância acode-me logo, sem necessidade de recorrer às "madeleines" do Proust: basta o calor que me envolve o corpo e a terra que me alarga o olhar. Por muitos lugares em que tenha vivido, sinto-me sempre daqui. Aqueles tempos eram de chumbo e de cinza, mas as memórias nunca deixaram de ser de alegria...

E pensar que, segundo o economista Nuno Palma, da Universidade de Manchester, esses anos constituíram o período mais glorioso do crescimento económico de Portugal nos últimos anos..."

Luís Castro Mendes (DN)

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