sexta-feira, 8 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.

Niassa, Atlântico, 1 de Abril de 1971


Q.,


Há frases que, recorrentemente, a propósito de isto ou de aquilo ou, por vezes, sem propósito nenhum, me vêm à memória. Creio, de resto, que o mesmo acontece com muita gente. Quantas vezes citei: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo» e tive como resposta imediata da pessoa que me escutava: «Gabriel Garcia Márquez - Cem Anos de Solidão».

Hoje de manhã, ainda um pouco ensonado e saindo devagar de uma noite mal dormida, em luta acesa com um vómito que o balanço do navio permanentemente convoca, no meio deste mar violento que logo à saída do Tejo nos recebeu de mau humor, dei por mim a sussurrar para as paredes do camarote «Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gugor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso» e, à falta de interlocutor, eu mesmo acrescentei: « Franz Kafka - A Metamorfose».


Não serei um insecto monstruoso, embora ache que o camuflado, com a bizarria das suas cores, poderia dar uma pele adequada a um bichinho dessa espécie. Talvez sejam  só os sonhos inquietos e as inglórias insónias que adivinho para os próximos dois anos, se os conseguir viver e ,vivendo, para os anos seguintes se as marcas ficarem fundas e a memória começar a sangrar (stress pós -traumático de guerra  se chama e nas Américas se estuda, importação do Vietname, manias de ricos, lá vamos nós dizendo na nossa orgulhosa e cantada pobreza franciscana que se contenta com um piedoso 'apanhado pelo clima'). Talvez sejam as tristezas acordadas e repetidas que já vivi, vivo e certamente continuarei a viver neste Portugal de Além e Aquém Mar, se ao Aquém conseguir regressar são e salvo, como se diz, e eu espero ver acontecer. Que a ausência de Deus venha em nosso auxílio (inspiração Holderliniana).  Pois que aconteça e eu esteja cá para ver, mas sem essa metamorfose monstruosa de que foi vítima o nosso amigo Gugor Samsa e pela qual têm passado, as mais das vezes sem darem por isso, tantos soldadinhos mansos e de chumbo moldável nascidos e criados tanto nas cidades grandes como nas berças, as mais das vezes em famílias respeitáveis e respeitadoras, gentes de princípios, de missas e comunhões, até, obedientes a Deus e a quem manda (Salazar! Salazar! Salazar!) e logo, quase por artes mágicas ou milagre da Nossa Senhora que nos apareceu para anunciar a conversão da Rússia, metamorfoseados em matadores exímios e coleccionadores de dedos e orelhas de pretos conservados em frascos de álcool.  E viva a ditosa pátria que tais filhos tem. Viva!