Niassa, Atlântico, 1 de
Abril de 1971
Q.,
Há frases que,
recorrentemente, a propósito de isto ou de aquilo ou, por vezes, sem propósito
nenhum, me vêm à memória. Creio, de resto, que o mesmo acontece com muita
gente. Quantas vezes citei: «Muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde
remota em que o pai o levou a conhecer o gelo» e tive como resposta imediata da
pessoa que me escutava: «Gabriel Garcia Márquez - Cem Anos de Solidão».
Hoje de manhã, ainda um pouco ensonado e saindo devagar de uma noite mal dormida, em luta acesa com um vómito que o balanço do navio permanentemente convoca, no meio deste mar violento que logo à saída do Tejo nos recebeu de mau humor, dei por mim a sussurrar para as paredes do camarote «Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gugor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso» e, à falta de interlocutor, eu mesmo acrescentei: « Franz Kafka - A Metamorfose».
Hoje de manhã, ainda um pouco ensonado e saindo devagar de uma noite mal dormida, em luta acesa com um vómito que o balanço do navio permanentemente convoca, no meio deste mar violento que logo à saída do Tejo nos recebeu de mau humor, dei por mim a sussurrar para as paredes do camarote «Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gugor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso» e, à falta de interlocutor, eu mesmo acrescentei: « Franz Kafka - A Metamorfose».
Não serei um insecto
monstruoso, embora ache que o camuflado, com a bizarria das suas cores, poderia
dar uma pele adequada a um bichinho dessa espécie. Talvez sejam só os
sonhos inquietos e as inglórias insónias que adivinho para os próximos dois anos,
se os conseguir viver e ,vivendo, para os anos seguintes se as marcas ficarem
fundas e a memória começar a sangrar (stress pós -traumático de guerra se
chama e nas Américas se estuda, importação do Vietname, manias de ricos, lá
vamos nós dizendo na nossa orgulhosa e cantada pobreza franciscana que se
contenta com um piedoso 'apanhado pelo clima'). Talvez sejam as tristezas
acordadas e repetidas que já vivi, vivo e certamente continuarei a viver neste
Portugal de Além e Aquém Mar, se ao Aquém conseguir regressar são e salvo, como
se diz, e eu espero ver acontecer. Que a ausência de Deus venha em nosso
auxílio (inspiração Holderliniana). Pois que aconteça e eu esteja cá para
ver, mas sem essa metamorfose monstruosa de que foi vítima o nosso amigo Gugor Samsa
e pela qual têm passado, as mais das vezes sem darem por isso, tantos
soldadinhos mansos e de chumbo moldável nascidos e criados tanto nas cidades
grandes como nas berças, as mais das vezes em famílias respeitáveis e
respeitadoras, gentes de princípios, de missas e comunhões, até, obedientes a
Deus e a quem manda (Salazar! Salazar! Salazar!) e logo, quase por artes
mágicas ou milagre da Nossa Senhora que nos apareceu para anunciar a conversão
da Rússia, metamorfoseados em matadores exímios e coleccionadores de dedos e
orelhas de pretos conservados em frascos de álcool. E viva a ditosa
pátria que tais filhos tem. Viva!