quinta-feira, 26 de novembro de 2015

DE OUTROS


Ferreira Fernandes

AS FOLHAS MORTAS

Ferreira Fernandes
DN

Fui parisiense durante cinco anos. Às vezes digo-o só para mim. Outras, digo-o porque tenho de explicar que um dos meus livros é A Vida à Sua Frente, de Romain Gary. O amor entre um rapazinho árabe, Momo, e uma reformada prostituta judia, sobrevivente de Auschwitz, Madame Rosa. Os dois viviam na cabeça de Momo, que conta a história, e num prédio arruinado e de longas escadas, na parisiense Belleville, o bairro de Edith Piaf e como ela, que era filha duma berbere. Eu gosto de dizer aos outros que fui parisiense. Gosto porque Paris é um lugar onde bocadinhos do mundo vão desembarcando.
Eu estive lá. Cercado do mundo e com Paris a crescer em mim a ponto de me fazer amar um livro porque era um livro de Paris. Mas A Vida à Sua Frente é só um romance e pode ser romanceado. Pode ser que Paris não exista. Falemos, então, de pessoas. O mundo em Paris. Em 1975, ano em que deixei Paris, A Vida à Sua Frente ganhou o Goncourt, o prémio literário mais prestigiado em França. Vocês sabem, aquele prémio que, em 2015, teve entre finalistas o romance dum tunisino sobre uma aldeia do Magrebe, o romance sobre uma história cairota, escrita por judeu nascido na capital do Egito, e o romance dum francês sobre lugares que nos habituamos a ouvir, hoje, em notícias de guerra: Aleppo, Palmira…
Voltando quarenta anos atrás, Romain Gary era outro parisiense dos quatro costados, herói da libertação de França. Nascera na Lituânia, judeu russo. Madame Rosa, a personagem de A Vida à Sua Frente, era judia polaca e, quando levada ao cinema (1978), foi interpretada por Simone Signoret, já em fim de carreira. Ah, Signoret, a do filme Casque d’Or (1952), a bela de cabelos louros daBelle Époque, amante de bandidos, personagem real que deu nome ao jardim Casque d’Or, vizinho desta Paris popular, da Margem Direita… Por falar no que venho falando, Simone Signoret nasceu na Alemanha. E o homem da sua vida foi Yves Montand, que cantou Feuilles Mortes, no filme Paris É Sempre Paris (1951). Yves Montand, aliás, Ivo Livi, nascido em Monsummano Terme, na Toscana, Itália.
Também Romain Gary teve um grande amor, Jean Seberg, a americana. Lembro-me dela ardina, loura de cabelos curtinhos, com voz e as letras na T-shirt, a apregoar o jornal New York Herald Tribune nos passeios dos Champs-Élysées. Foi num filme, À Bout de Souflle, de Jean-Luc Godard, suíço. Com a americana contracenava Jean-Paul Belmondo, chamado assim porque o pai, de Argel, era de origem siciliana. Um dia, Seberg matou-se, o que levou, meses depois, Romain Gary a pôr o revólver na boca e a assinar as últimas palavras: «Isto não tem nada que ver com Jean Seberg.» A canção de Montand diz: «As folhas mortas apanham-se às braçadas, a saudade e o lamento também…»
Diz também: «Eu amava-te, tu amavas-me, mas a vida separa os que se amam, muito suavemente, sem fazer barulho…» O mundo vai para lá morar, Paris, esperando que esta o deixe amar e desamar muito suavemente, sem fazer barulho, com o bater forte que lhe vai por dentro. Assunto de cada um, de dois, talvez. Na Rua de Charonne, a sul de Belleville, Grégorie, o judeu, 46 anos, e Djamila, a muçulmana, 40 anos, donos do restaurante La Belle Équipe, ainda viviam o tempo em que a vida era mais bela e o sol mais quente do que hoje. Foi há dez dias. Até que chegaram uns tipos com ideias e religião daquelas que se agarram às solas e obrigam a arrastar os pés pelo passeio. Eles não arrastam, alimentam-se do que lhes vai nas solas. Não chegaram suavemente, nem sem fazer barulho. Grégorie tinha a mão de Djamila entre as suas quando ela morreu. Às vezes Paris não se cumpre e a vida à sua frente cessa.