sábado, 9 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.




Bissau, 21 de Janeiro de 1973


Q.,


"O quartel entra imediatamente em prevenção rigorosa. Passe revista ao arame farpado". Foram as últimas palavras. Antes delas, secamente, veio a notícia da boca do comandante: "Mataram o Amílcar Cabral."
E foi assim que fiquei a saber, antes de todos os outros que não estiveram metidos na conspiração, da morte do Amílcar Cabral, em Conacri, República da Guiné.
Explico melhor e com mais detalhe: estava de oficial de dia no Comando da Defesa de Bissau e as horas passaram calmamente ao ritmo das rotinas habituais próprias deste tipo de funções - formaturas, inspecções de casernas e refeitório, provas do rancho, assistência às refeições, almoço e jantar das praças, assinaturas de autorizações de saída de viaturas e pessoal. As merdas do costume.
Às oito da noite, entrou-me no gabinete o ordenança do comandante com uma mensagem urgente para me apresentar imediatamente no comando. Lá fui.
E no comando estavam o comandante, o segundo-comandante, o chefe do Estado-Maior, o major de Informações. Cheirou-me a esturro. Apresentei-me com os salamaleques militares que se usam nestas ocasiões e esperei.
Não esperei muito antes que o comandante disparasse: "Então, nosso alferes, novidades?". Sem perceber muito bem o que se estava a passar, respondi: "Nada de especial. O dia correu normalmente: formaturas, inspecções, rancho. Nem o piquete teve de sair (como somos 'Defesa de Bissau', cada vez que se ouve um tiro, em Bissau ou arredores, lá vai o piquete saber o que se passou), a ronda não reportou nenhum problema com as patrulhas (há vinte e uma patrulhas nossas, diariamente, que percorrem as tabancas que cercam a cidade). E o comandante, ainda com rodeios: "E novidades militares?" "Não há", respondi.
Então, o comandante, decidido, entrou directamente no assunto. Deixo o diálogo curto:

Comandante - Há, há! Mataram o Amílcar Cabral.

Eu - Quem?

Comandante - As tropas.

Eu - Quais?

Comandante - Parece que as dele. O quartel entra imediatamente em prevenção rigorosa. Passe revista ao arame farpado.

Assim, foi assim, de forma aparentemente ingénua, simples, breve, sem burocracias, sem papel azul, que me foi comunicada a criminosa morte de um dos mais prestigiados dirigentes independentistas africanos.
Saí acabrunhado e fui para o gabinete do oficial de dia, onde peguei na lanterna e disse ao oficial de prevenção, um mentecapto do Barreiro que tem fama (e julgo que proveito) de bufo: "O quartel entrou em prevenção rigorosa. Vou passar revista ao arame farpado." E ele, em pergunta legítima: "Porquê?". E eu em resposta impaciente: "Mataram o Amílcar Cabral." E ele com curiosidade justificada: "Quem?" E eu, irritado e em voz alta: "Uns filhos-da-puta, uns filhos da puta!". E ele, um pouco assustado: "E sabe-se quem são?". Respondi-lhe já no limiar da porta e no limite da paciência: "A seu tempo se saberá.".

Passei revista ao arame farpado, voltei ao gabinete e disse ao bufo: "Podes ir dormir para o teu quarto porque eu não tenho sono e vou ficar por aqui."

Fiquei e aqui estou a contar-te mais um episódio deste crime continuado que é a guerra colonial.
Logo, lá para o fim da madrugada, antes de sair de serviço, ao preencher o formulário do relatório, no campo das 'Ocorrências', vou escrever: 'Nada a registar'.

Despeço-me com o beijo habitual e, hoje, acrescento:


A Bem da Nação,

P.