Bissau, 21 de Janeiro de 1973
Q.,
"O quartel entra imediatamente em prevenção rigorosa. Passe revista ao arame farpado". Foram as últimas palavras. Antes delas, secamente, veio a notícia da boca do comandante: "Mataram o Amílcar Cabral."
E foi assim que fiquei a saber, antes de todos os outros que não estiveram metidos na conspiração, da morte do Amílcar Cabral, em Conacri, República da Guiné.
Explico melhor e com mais detalhe: estava de oficial de dia no Comando da Defesa de Bissau e as horas passaram calmamente ao ritmo das rotinas habituais próprias deste tipo de funções - formaturas, inspecções de casernas e refeitório, provas do rancho, assistência às refeições, almoço e jantar das praças, assinaturas de autorizações de saída de viaturas e pessoal. As merdas do costume.
Às oito da noite, entrou-me no gabinete o ordenança do comandante com uma mensagem urgente para me apresentar imediatamente no comando. Lá fui.
E no comando estavam o comandante, o segundo-comandante, o chefe do Estado-Maior, o major de Informações. Cheirou-me a esturro. Apresentei-me com os salamaleques militares que se usam nestas ocasiões e esperei.
Não esperei muito antes que o comandante disparasse: "Então, nosso alferes, novidades?". Sem perceber muito bem o que se estava a passar, respondi: "Nada de especial. O dia correu normalmente: formaturas, inspecções, rancho. Nem o piquete teve de sair (como somos 'Defesa de Bissau', cada vez que se ouve um tiro, em Bissau ou arredores, lá vai o piquete saber o que se passou), a ronda não reportou nenhum problema com as patrulhas (há vinte e uma patrulhas nossas, diariamente, que percorrem as tabancas que cercam a cidade). E o comandante, ainda com rodeios: "E novidades militares?" "Não há", respondi.
Então, o comandante, decidido, entrou directamente no assunto. Deixo o diálogo curto:
Comandante - Há, há! Mataram o Amílcar Cabral.
Eu - Quem?
Comandante - As tropas.
Eu - Quais?
Comandante - Parece que as dele. O quartel entra imediatamente em prevenção rigorosa. Passe revista ao arame farpado.
Assim, foi assim, de forma aparentemente ingénua, simples, breve, sem burocracias, sem papel azul, que me foi comunicada a criminosa morte de um dos mais prestigiados dirigentes independentistas africanos.
Saí acabrunhado e fui para o gabinete do oficial de dia, onde peguei na lanterna e disse ao oficial de prevenção, um mentecapto do Barreiro que tem fama (e julgo que proveito) de bufo: "O quartel entrou em prevenção rigorosa. Vou passar revista ao arame farpado." E ele, em pergunta legítima: "Porquê?". E eu em resposta impaciente: "Mataram o Amílcar Cabral." E ele com curiosidade justificada: "Quem?" E eu, irritado e em voz alta: "Uns filhos-da-puta, uns filhos da puta!". E ele, um pouco assustado: "E sabe-se quem são?". Respondi-lhe já no limiar da porta e no limite da paciência: "A seu tempo se saberá.".
Passei revista ao arame farpado, voltei ao gabinete e disse ao bufo: "Podes ir dormir para o teu quarto porque eu não tenho sono e vou ficar por aqui."
Fiquei e aqui estou a contar-te mais um episódio deste crime continuado que é a guerra colonial.
Logo, lá para o fim da madrugada, antes de sair de serviço, ao preencher o formulário do relatório, no campo das 'Ocorrências', vou escrever: 'Nada a registar'.
Despeço-me com o beijo habitual e, hoje, acrescento:
A Bem da Nação,
P.