Q.,
Enfim, em terra. Bissau, porto de Pidgiguiti, onde tudo começou, em Agosto de 1959. Umas reivindicações banais dos estivadores - mais dinheiro para a comida, menos porrada, tudo 'se faz favor'. Um atrevimento intolerável no douto parecer das autoridades coloniais, pouco habituadas a pedidos insólitos ou insubmissões dos indígenas. E vá de porrada com bastões e vá de tiros com as velhas 'Mauser', que estas coisas sabe-se como começam mas não se sabe como acabam. Esta pretendia ser uma lição exemplar e acabou mal. Foi brutal o castigo e no fim apurou-se: mortos pelos cinquenta, feridos pela centena, deportados para S. Tomé, terra de 'acolhimento' de escravos de várias colónias, foram às molhadas. Foi o rastilho, a explosão deu-se uns tempos depois. E, agora, é o que sabemos. Mais: é o que sabemos e o que nos é sonegado. É uma realidade escondida que nos aparece só com o rabo de fora, nos comunicados tímidos, incompletos, espaçados que as Forças Armadas vão largando, a conta-gotas, para os jornais. Os nomes de dois ou três mortos ao serviço da Pátria, doses reduzidas porque é preciso evitar que o desânimo se instale ou, o que também pode acontecer, que a revolta branca também estale. Aí e aqui.
Fomos autorizados a sair do barco. Aproveitei para dar uma espreitadela à cidade, num táxi azul, a cair de podre, e ir aos correios deixar a carta que te escrevi a bordo do 'Niassa'. Tentei telefonar mas foi impossível, as chamadas para Lisboa demoram uma eternidade e não se via o fim da bicha dos que lá estavam pelas mesmas razões. A cidade é pequena, desinteressante, pobre, muito pobre, cheia de tabancas miseráveis, uma delas, por onde passei por sugestão do taxista, conhecida por 'Pilão', uma espécie de 'Intendente' do Terceiro-Mundo, uma imundície pegada, é frequentada por cabos e soldados que lá vão para 'espalhar a Fé', aliviar os tomates, arriscar uma galiqueira. Misérias que o Império tece.
Sem misérias, rica, consta mesmo que muito rica, apenas a ’Casa Gouveia’, do imperial e omnipresente grupo CUF, que monopoliza o comércio interno e externo da ’província’ e obriga os indígenas à cultura do amendoim (mancarra, por aqui chamado), um pouco como os indígenas de aí que obrigados são à cultura do trigo. Um único monumento, a velha fortaleza da Amura onde se refugia e vai planeando batalhas e defesas, avanços e recuos, o estado-maior da tropa. Ruas cheias de gente, paisanos pretos e andrajosos, bajudas de corpos esbeltos embrulhados em longos panos garridos que lhes moldam os corpos e fazem sobressair as bundas redondas (sem pensamentos libidinosos, juro, é o que se aproveita de toda esta paisagem humana), miúdos a correr e a pedir um peso aos passeantes brancos, militares brancos, na maioria da guarnição de Bissau, outros em trânsito de ou para quartéis que ficam lá para o mato, remotos, em teatro de operações, para utilizar a 'sofisticada' linguagem quarteleira.
Pessoas que se cruzam comigo lançam-me de soslaio um olhar triste, submisso, e seguem em passo lento, dengoso, sem vitalidade nem esperança. Vão desbussoladas, rendidas, vencidas - sente-se. Muitas, passam o tempo a tentar arpoar esmolas, tantas, que a cidade parece uma imensa esmolaria. A minha farda, de verde ainda não amarelecido pelo sol africano, com galões de alferes ainda brilhantes, a cheirar a Lisboa e a dinheiro fresco, faz de chamariz. Não me largam. Um, ‘Alfero, dá cinco pesos’ e logo outro 'Alfero, dá cinco pesos' e, depois outro e outro ainda, uma ladaínha.
Cafés e esplanadas cheias de soldados que bebem cerveja e comem sem requinte ostras pelo preço dos metropolitanos amendoins, despejando as cascas em baldes colocados ao lado das mesas. E falam alto, muito alto de batalhas reais e imaginadas, todas com muitos explosivos: tiros de espingardas, metralhadoras, canhões sem recuo, morteiros. Muitos mortos (turras, dizem eles), muitos heroísmos ( dos brancos, é bom de ver). Realidade e ficção misturadas em desabafos necessários, esconjuro de medos e fantasmas. Aproveitam também para engraxar as botas e esticam-se nas cadeiras, imitam a pose dos ricos lá da aldeia quando, no café, recorrem aos serviços do 'graxa'. Têm, finalmente, a seus pés uns humildes (humilhados?) servidores que espalham a pomada com as mãos e, depois, em passes viris de pano sujo que estraleja no ar e só depois poisa nas botas para a acção última do luzimento: engraxadores africanos que, de caixas às costas, enxameiam a cidade e oferecem os seus serviços ao preço da uva mijona. Cerveja, ostras, bota luzidia - vida de luxo ou a ela parecida, pelo menos por uma vez. Com papas e bolos se enganam os tolos, ditado esquecido e que neste momento me ocorre.
Cafés e esplanadas cheias de soldados que bebem cerveja e comem sem requinte ostras pelo preço dos metropolitanos amendoins, despejando as cascas em baldes colocados ao lado das mesas. E falam alto, muito alto de batalhas reais e imaginadas, todas com muitos explosivos: tiros de espingardas, metralhadoras, canhões sem recuo, morteiros. Muitos mortos (turras, dizem eles), muitos heroísmos ( dos brancos, é bom de ver). Realidade e ficção misturadas em desabafos necessários, esconjuro de medos e fantasmas. Aproveitam também para engraxar as botas e esticam-se nas cadeiras, imitam a pose dos ricos lá da aldeia quando, no café, recorrem aos serviços do 'graxa'. Têm, finalmente, a seus pés uns humildes (humilhados?) servidores que espalham a pomada com as mãos e, depois, em passes viris de pano sujo que estraleja no ar e só depois poisa nas botas para a acção última do luzimento: engraxadores africanos que, de caixas às costas, enxameiam a cidade e oferecem os seus serviços ao preço da uva mijona. Cerveja, ostras, bota luzidia - vida de luxo ou a ela parecida, pelo menos por uma vez. Com papas e bolos se enganam os tolos, ditado esquecido e que neste momento me ocorre.
O calor e a humidade sufocam-me. Tento afogá-los em Coca-colas, aqui de venda livre, sem o metropolitano proibicionismo parolo e salazarento, muitas e frescas, primeiro, mas depois de começar a sentir um nervoso miudinho, efeito do excesso de cafeína, mudo para as Fantas, umas laranjadas espanholas que, em condições normais, me serviriam para lavar penicos. Também muitas e frescas. O suor vai-se expandindo pelos texteis: já me encharca a camisa e as cuecas. Logo que o sol começou a baixar, as melgas, em nuvens, iniciam trabalhos: picam em todos os centímetros de pele desprotegida e, mesmo, por cima da camisa e das calças. Tive de me refugiar num restaurante com ar condicionado, o ’Pelicano’, junto do porto, onde jantei.
No fim do jantar, o chefe de mesa aproximou-se e logo declinou nome e funções que desempenhava: "Mário, chefe de mesa" e depois de breves perguntas protocolares «estava bom o jantar?» «deseja mais alguma coisa?», logo, e com toda a naturalidade, entrou em improváveis confidências: passado de militante do PAIGC, preso na esquadra de Bissau, ilha das Galinhas, Tarrafal, tudo somado onze anos de prisão. Ouvi interessado mas em silêncio, por prudência. Confissões destas não se fazem com tanta facilidade e logo ao primeiro contacto. E o meu estatuto de 'P.S.' (politicamente suspeito) que a Repartição de Informações, a famigerada 'Segunda', manda carimbar a vermelho no dossier que me dedica, por indicação da benemérita PIDE a que está ligada por fortes e fraternais laços, recomenda recato em situações pouco claras.
Amanhã seremos baldeados do ’Niassa’ directamente para uma lancha de desembarque da Marinha e para um batelão que irá a reboque. Um batelão! nem na Somália se transportam tropas num batelão. Só num 'império' pindérico, com um hortelão a fazer de imperador, e com Santa Comba Dão como capital é que as tropas expedicionárias se deslocam de batelão. Ninguém esperaria iates, mas um batelão??? Rumaremos a Bolama, onde vamos ficar durante um mês para instrução de aperfeiçoamento operacional, treino final para uma guerra a sério cada vez mais próxima.
Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.
Beijos (muitos) do
P.
Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
Vai-se-me o breve tempo de ante os olhos;
Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.
Beijos (muitos) do
P.