quarta-feira, 6 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



Empada, 15 de outubro de 1971


Q.,


Participei, ontem, numa operação a sério. No briefing feito na véspera, com a presença de tubarões dos comandos, pára-quedistas e fuzileiros, tropas especiais que foram para o centro do furacão por só elas fazerem operações ofensivas em zona de intervenção do comando-chefe (eufemismo usado para definir zonas libertadas e dominadas pelo PAIGC, como esta onde me encontro), fomos encarregados, como tropa de quadrícula, infantaria sem pedigree, soldadagem do peido-e-coice, de uma emboscada em carreiro que poderia servir de itinerário de fuga para os guerrilheiros atacados. Vinte e quatro horas!
Logo que saímos do arame farpado, mandei parar as tropas, disse ao que íamos, recomendei todo o cuidado e acabei recitando Aragon: "Déjà la Pierre où votre nom s'inscrit / Déjà vous n'êtes plus qu'un mot d'or sur nos places / Déjà le souvenir de vos amours s'efface / Déjà vous n'êtes plus que pour avoir péri". Fez-se um silêncio, até que o 'Arruda', o meu apontador de morteiro 60, veio a terreiro e perguntou: "Meu alferes, e o que é que isso quer dizer?" Lá respondi: "Quer dizer que, se te armas em herói e morres, talvez tenhas uma placa com o teu nome lá num beco de Arruda dos Vinhos, mas acabas esquecido e vais ter, de certeza, certezinha, um par de cornos a título póstumo". Concentrado, o Arruda respondeu-me: "Fooda-se, já percebi". Percebeu ele e perceberam os restantes. Ainda bem.
E lá fomos a caminho do objectivo que ficava em cona-maim-delta, linguagem casernicola, quer dizer, longe, bem longe, a quinze quilómetros ou por aí. A pé, a desviar capim a braços ou à catanada, a atravessar bolanhas e matas. Vinte milícias à frente da coluna, gente da terra, a abrir caminho e a guiar-nos, mais dez milícias atrás, prevenção, não vá o diabo tecê-las e a coluna partir-se em duas.
O tempo custou a passar. E não foi tanto pela tensão causada pelos tiros e rebentamentos que se ouviam lá ao longe ou pela possibilidade, sempre presente, de vermos surgir um grupo de guerrilheiros em fuga. Foi mais pela sede. A 'ementa' da ração de combate, feita certamente por um sargento lateiro de Intendência e ratificada por um general de aviário com ar condicionado, é composta de conservas de peixe - sardinhas picantes e atum salgado - conservas de carne - feijoada, carne guisada, paté de carne de porco, tudo com pilhas de sal - e bebidas - latas de leite com chocolate holandês e sumol. Para sobremesa, frutas cristalizadas e bem cobertas de açúcar. Salvam-se as pastilhas de cafeína, pelo gosto saboroso e pelo efeito de espertina. Resultado prático: depois da primeira refeição, ninguém ficou com uma gota de água no cantil. Foram vinte horas a suar e sem uma gota de água para ingerir. Cheguei a lamber o suor dos braços. Uma insuportável tortura, um martírio.
No regresso, o 'Lixa', desesperado, atirou-se ao chão e exigiu, aos berros, histérico, um helicóptero cheio de cerveja. Ignorava, olimpicamente, as minhas ordens para que se levantasse. Queria um helicóptero cheio de cerveja, e pronto! Eu: "'Lixa', vamos lá que já só faltam cinco quilómetros". Nada. "'Lixa", quando chegarmos ao quartel, pago-te duas cervejas de litro". Nada. "'Lixa', hoje é dia de correio. Deves ter aerograma da tua namorada". Nada. "'Lixa', olha que  se o filho-da-puta do capitão sabe desta desobediência grave, vamos os dois parar ao Tribunal Militar e bater com os ossos na pildra. Tu por desobediência, eu por não te ter dado um tiro". Nada. Ou um helicóptero cheio de cerveja ou nada. Já no limite da paciência, pedi a um grupo de soldados que o rodeassem e disse-lhe: "Vou dar ordem a estes gajos todos para te mijarem em cima". Claro que nunca o faria, havia ainda a possibilidade última de improvisarmos uma maca com o painel vermelho que trazemos para assinalar a nossa posição à aviação, em caso de necessidade, e carregar com ele, mas o milagre que eu esperava deu-se - o 'Lixa' levantou-se de um salto e lá seguimos. E o 'Lixa' andando, andando e insistindo, insistindo: "Quero um helicóptero cheio de cerveja. Quero um helicóptero cheio de cerveja".  Mais à frente, uma mata de cajueiros surgiu-nos como um oásis: apanhámos os frutos todos e sugámos os pedúnculos esponjosos e cheios de água. Cheios de água e de um ácido que nos rebentou as bocas, mas que se lixe, a sede acalmou um pouco. Não sei quantas cervejas bebeu o 'Lixa', quando chegou ao quartel, duas de litro, pelo menos, foram, porque eu cumpri a palavra e paguei,  mas eu vinguei-me bem da sede: bebi uma garrafa de água de Vichy de um trago, o estômago rejeitou-a na íntegra. Reincidi e o estômago repetiu a reacção. Bebi uma terceira, aos tragos, civilizadamente, e essa foi bem recebida. A seguir, foi um litro de chá frio que sempre tenho no frigorífico da messe.
Aí tens o relatório da minha primeira operação 'à séria'. Dos outros, os das tropas especiais que estiveram no centro da 'patatolina', no meio dos tiros e rebentamentos, posso apenas dizer o que consta: safaram-se sem mortos, mas tiveram vários feridos. Haja Deus!

Beijos do herói (vivo! e cheio de sede... de ti).
P.