Empada, 6 de outubro de 1971
Q.,
O capitão, "meu triste herói de merda, mentiroso", homem sem qualidades ( tenho de ler o Musil...) que num ataque de Agosto por muito pouco se safou de levar com uma canhoada nos cornos, milagrosamente, diz ele, infelizmente, digo eu, por precaução refugia-se no quarto, ali bem pertinho do abrigo de cimento armado a que os oficiais têm direito. Os alferes e os furriéis entregam-se à nobre arte da carteação: bisca, sueca, montinho, lerpa, crapô, king, decilitrando cervejolas e whiskies. O primeiro-sargento do pelotão de morteiros, em adiantado estado de decomposição cerebral por muitas comissões em África, está emboscado, com um longo fueiro a que chama bazuca, junto da cozinha das messes, à espera dos cães que vêm ao cheiro da comida. Leva as noites nisto. Quando consegue ferrar uma bordoada num bicho, vem junto de nós anunciar, orgulhoso: "Mais um ferido nas tropas IN" e volta para a emboscada. O primeiro-sargento Semedo está na secretaria a fazer as contas do rancho, as difíceis continhas do rancho..., os débitos, os créditos, uns trocos para a carteira. Sete filhos lá no Minho, muitas despesas, o pré não dá para tudo... O primeiro-sargento Remendão está no quarto a fazer as contas das cantinas, as difíceis continhas das cantinas..., os débitos, os créditos, uns trocos para a carteira. Dois filhos lá em Elvas, muitas despesas, o pré não dá para tudo... O Silveira, furriel vagomestre, na mesa do fundo, pouca luz, acerta as contas do rancho, as difíceis continhas do rancho, para baterem certo com as do 1º Semedo..., os débitos, os créditos, uns trocos para a carteira. Noiva lá na Covilhã, nos preparos do enxoval, a entrada para o Toyota Corolla, muitas despesas, o pré não dá para tudo... O primeiro-sargento Lopes, o mais recente na escala, responsável do armamento, ao balcão do bar, avia os habituais 'escoceses' e a partir do terceiro começa a dizer, alto e bom som: "O Semedo rouba no rancho, o Remendão rouba nas cantinas, e eu vou roubar o quê? Granadas?".
Os soldados e cabos também arranjam maneiras diversas de passar o tempo: cartas, copos, um ou outro a enrabar o cabo 'Lateiro', legionário profissional e panasca amador que, em regime de voluntariado, e em atitude até patriótica!, oferece a rectaguarda do seu próprio corpo para alívio das tropas expedicionárias; uns quantos (como o 'Peixe Frito', hetero radical mas que tolera e até ri com gosto da vida sexual do cabo 'Lateiro' por ser, segundo diz, uma boa oportunidade de o povo enrabar a Legião, ex-operário corticeiro numa fábrica de rolhas, no Seixal, que um dia mandou o chefe meter as rolhas no cu e enveredou pela carreira artística - faz de palhaço pobre num circo e o seu 'número' tem poucos dizeres, é mais de levar chapadas e atirar-se para o chão, assim fazendo rir as criancinhas) vagueiam pela tabanca, à cata de bajudas para fazerem aquilo que 'até as mosquinhas gostam'. Miscigenação. Por isso é que há mulatos. E, muitas vezes, antes dos mulatos, há corrimentos, candidíases, gonorreias tratados a antibióticos. Às vezes não chega, é preciso hospital e bisturi. O 'Coruche' passou por isso e ficou muito impressionado quando viu o marsápio aberto em quatro partes 'Parecia uma banana descascada', diz ele. Os regulamentos militares mandam punir, mas são ignorados. Por caridade. O corpo é fraco, as necessidades muitas e as condições não são as ideais... E que de espanto, se já nos longínquos e idos tempos, ditos de maricachucha, se assinalava: "Que sucesso podemos logo esperar de nossas batalhas indo a elas carregados de pecados, e bominações, com soldados amancebados, blasfemos, homicidas, perdoados pouco antes de gravíssimos delitos, e com as almas vendidas ao demónio"?
E são assim as noites de Empada, as longas noites sem facas longas, quando a chuva cai e os nervos se acalmam. Menos entusiasmantes, pelo que se vê, do que as nossas tórridas noites nas boites de Liège ou Maastricht, mesmo menos picantes do que as nossas noites coloridas da 'Adágio' ou do 'Carroussel', aí na Lísbia. Mas, olha, é o que arranja, agora e aqui.
Despeço-me com um ardente beijo, como se estivéssemos a dançar na 'Adágio', no 'Carroussel', em Liège ou em Maastricht. E sussurro-te um terno
Boa noite,
P.