sábado, 2 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.

Empada 26 de Dezembro de 1971

Q.,

Depois do almoço, ia a sair do quarto quando um brasileiro chamado Nelson Ned, escondido dentro do transístor, me perguntou aos berros: "O que é que você vai fazer, domingo à tarde?" A pergunta pareceu-me estúpida e até provocatória. Era óbvio que, no sul da Guiné, de camuflado, G3 ao ombro, carregadores à volta do cinturão e nos bolsos das calças, junto às canelas, duas granadas defensivas nos bolsos da camisa, ração de combate à cintura, não iria, certamente, para uma matinée dançante. "O que é que você vai fazer, domingo à tarde?" Só poderia ir para um patrulhamento e emboscada que até iam prolongar-se até à meia-noite. Optei por não entrar em diálogo e nem o deixei dizer o resto. Com um pontapé acabei com a conversa e com o rádio. Fiz mal e logo me arrependi: pontapear um anão, como é o Nelson Ned, está longe de ser um acto heróico e, ainda por cima, terei de mandar vir de Bissau um novo transistor.
Serenei e lá saí por esses campos fora, como lá na minha terra a cantar  se diz, por trilhos e pântanos, por pântanos e trilhos. Olho vivo, orelhas como radares, a patrulhar, sempre a patrulhar. E agora aqui estou, no meio do capim, sentado como um Buda magro, aqui estou emboscado até à hora do regresso ao quartel, se até lá não acontecer um imprevisto desagradável, claro. Aproveito o tempo e a luz do dia para escrever (escrever-te) e ler um pouco. Para estas 'operações' e como modo de acelerar a passagem das horas, trago sempre comigo, por companhia, transportados nos bolsos inferiores das calças, junto aos carregadores, dois grandes livros de formato pequeno (existe um terceiro, "Poesias e Cartas", do José Bação Leal que hoje deixei no quartel). Sobrecapeei-os com plásticos e em mais plásticos os embrulhei, assim ficam protegidos das águas puras da chuva que possa cair e das águas e lamas podres das bolanhas que sempre atravessamos. São "Pátria Lugar de Exílio", do Daniel Filipe e "Autobiografia e Poemas", do Maiakowski. Dobrada, no meio do livro do Maiakowski, vem uma carta/relíquia que o Zé Manel - meu amigo que não conheceste, companheiro de longos serões alentejanos com castanhas assadas, vinhos novos da talha, por vezes ainda com grainhas das uvas, e conversas sobre os malteses do Manuel da Fonseca, os mineiros do Manuel do Nascimento, os vagabundos do Antunes da Silva, patrícios autores que lhe frequentaram a casa paterna. E também vinham à colação o Carlos de Oliveira, o Pessoa, o Jorge Amado, o Vargas Llosa, tantos outros -  me escreveu, nos idos de 1969,  andava ele por aqui, itinerante, vagadundeando entre Fá, Nova Lamego, Xitole, Enxalé, Béli, Madina do Boé, numa companhia de intervenção, carne para canhão, sempre convocada para as situações mais perigosas, tentando fugir aos tiros, às minas, às armadilhas, aos morteiros, aos canhões e andava eu a roçar o cu nos cafés de Campo de Ourique, a discutir a teoria e a praxis, a relembrar o maio do ano anterior, a ver em todas as casas burguesas os nossos palácios de inverno. Fancarias, masturbações. 
Três mortos por companhia: o Daniel Filipe que terá morrido de morte natural; o Maiakowski que escolheu o suicídio quando viu os primeiros sinais de desvirtuamento de uma revolução que sonhara, fizera e cantara; o Zé Manel que, pouco tempo depois de me ter escrito esta carta, foi 'suicidado' (como também aconteceu ao José Bação Leal, em Moçambique) pelos de aí, os dos ministérios, com as balas de os de aqui, os guerrilheiros independentistas. Foi 'suicidado' no meio de um confronto aceso, junto à margem do rio Corubal. Episódio banal, por tão frequente, nesta terra que se está a tornar o Vietnam dos pequenitos. Assim qualquer coisa parecida com o que, na carta, me foi relatado e que releio e transcrevo: "Aqui em Nova Lamego temos feito escoltas às colunas de reabastecimento que vão para Madina do Boé e para Béli, quartéis que na época das chuvas que agora se avizinha ficam isolados do mundo exterior. São colunas que demoram cinco e seis dias. A última demorou sete. São cento e setenta quilómetros a andar através do mato, escoltando as viaturas, passando dias literalmente sem comer, sem dormir, numa zona recheada de perigos que já nos infligiu um morto e para cima de vinte feridos, alguns deles com muita gravidade, excluindo os mortos do batalhão e soldados africanos que iam connosco. É horrível, pá. Num mês, três escoltas deste género. Temos cinquenta e seis homens operacionais que se encontram arrasados e estropiados, como eu. Há pelotões que estão reduzidos a cinco e a sete homens. Exceptuando oito feridos que tivemos numa emboscada, na qual morreram dois soldados nativos, o resto dos sinistrados foi com minas anticarro e antipessoal. Minas comandadas que nunca rebentaram na primeira viatura. A última viatura a explodir, aí a quinhentos metros de Béli, ia atrás daquela em que eu seguia. A minha passou, a outra já não passou. Só ouvi uma tremenda explosão, vi fumo negro, vi pedaços de lata, de pneus e corpos pelo ar. Depois, vai-se socorrer os feridos e rebentam mais armadilhas antipessoal lá colocadas para o efeito. Nunca esperei ver tanta desgraça, tanto corpo mutilado, tanto corpo esventrado. Um tipo chega a um momento em que não sabe onde há de pôr os pés, pois os trilhos na mata também estão armadilhados. O morto que temos, um alferes, foi numa mina antipessoal. Um cabo que o foi socorrer tropeçou noutra e ficou sem uma perna. No caminho para cá sofremos outra emboscada com mina accionada pelo explosor. A emboscada estava montada com tal técnica que estávamos cercados. A nossa sorte foi os gajos fazerem fogo a medo, pois nós tínhamos um
bombardeiro por cima. Na emboscada propriamente dita não sofremos baixa nenhuma. Ficaram gravemente feridos oito soldados africanos que iam à frente a picar a estrada no momento em que as armadilhas explodiram, dando sinal da abertura da emboscada. Um tipo chega a Madina do Boé e deita a correr para os abrigos, pois assim que a aviação sai de cima de nós começam logo a cair as rocketadas e as morteiradas do 'oitenta e dois'. À noite há a sessão de canhoada. Na última noite que lá dormimos, caíram dentro do quartel trinta e três granadas de canhão sem recuo. Pelo caminho só se vêem viaturas queimadas, daimlers destruídas, enfim um percurso medonho.
Isto dá cabo de um gajo. Já estive catorze vezes debaixo de fogo e cada vez tenho mais medo, porque cada vez um tipo tem mais consciência do perigo. Nas primeiras vezes ainda é como o outro: um tipo não conhece a coisa, anda à vontade no mato, só quando ouve tiros é que se apercebe do perigo. Agora um tipo já fareja o perigo, já conhece sítios medonhos, propícios à emboscada, quando atravessa clareiras tem a noção do risco que corre. Quando há combate já tem mais autodomínio, mais clareza de raciocínio, já não se põe aos tiros à doida, mas o medo é cada vez maior. Venham-me cá com essa opinião que certos indivíduos generalizaram: 'Depois dum certo tempo, dia em que a gente sai e não ouve tiros, já não é dia'. E estes gajos aqui, cabrões, só atacam à base de armas pesadas: metralhadoras, bazucas, lança-rockets e morteiros".
Foi a última carta que recebi do Zé Manel. "Isto dá cabo de um gajo", dizia ele. E deu: poucos meses depois, morreu numa emboscada. Com vinte e poucos anos, uma idade obscena para se morrer. Soube-se que foi para os lados do rio Corubal, mas nunca se soube se foi mina, armadilha, bala ou granada. Quando o corpo chegou à 'Metrópole' ia em urna selada, ninguém o viu. As 'autoridades' quiseram sepultá-lo no talhão dos combatentes. A família não autorizou. Está em campa rasa com nome, datas de nascimento e morte. Sem epitáfio.
Bom, a noite está a cair e as melgas, aos milhões, já estão a atacar. Termino. Vou estender-me no capim e proteger-me com o poncho. Pensarei em ti e recordarei as nossas horas felizes de tempos recentes. Sonho: "Estás ainda presente na curva do colchão. / No travesseiro desalinhado. Naquele gesto / de deixar a cortina cair sobre o teu pudor adolescente."

Beijo-te,
P.