Sou Narciso do Meu Ódio!
- O Meu ódio é Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos d' Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só
Dilúvio Universal!
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...
até apagar o Sol!
Almada Negreiros
Cena do Ódio
Para essa gente, o presente vivido com desafogo e conforto e o sonhado futuro com os luxos da Quinta Patiño ou do edifício 'Katinga', em Cascais, conflituam com as suas raízes. E esses conflitos são, por norma, resolvidos, a peso de ouro, no divã do psicanalista com consultório nas Avenidas Novas.
Raposo, esperto e manhoso raposão, escolheu outra via: escreveu um livrinho e, assim, poupou no psicanalista e ainda recebeu direitos pagos pela Fundação das mercearias 'Pingo Doce'. Juntou o útil ao agradável.
Num panfleto que destila ódio, misto de reportagem, de autobiografia e ensaio de antropologia de feira, Raposo, logo no início, diz ao que vem: "tinha de me confrontar com as raízes alentejanas". E as raízes do Henriquinho são compostas de gente a viver numa "casa de bonecas - telhas nuas sustentadas numa armação de canas", onde "a dieta proteica não corria forte", com uma família "onde o suicídio corre forte". E nem sequer falta o tio Jacintinho, homicida e suicida, a tia Dorinda de vernáculo fácil "punheta dum cabrão", a avó bastarda com quem "a saga da ilegitimidade saía do abstrato e estacionava o seu fedor junto da minha árvore genealógica". A aldeia tem um nome premonitório - Foros da Pouca Sorte, concelho de Santiago do Cacém. E o Raposo, incisivo: "tive a perfeita noção de que as minhas filhas, quando crescerem, sentirão uma repulsa instintiva por este local".
Questões de família, massacre tardio, e para alguns póstumo, de bisavós, avós, tios, tias, primos, primas, tudo gente que o Henriquinho tem por pouco recomendável, transformadas em 'Big Brother' para intelectuais 'neocons' e burguesotes bem sucedidos e snobes? Desde logo sim, mas não só. O ódio acumulado ao longo de décadas é demasiado grande para se esgotar numa tribo. E o moço, desarvorado, usando as canetas como hastes, desembolado, investe com bravura para todo um povo - o meu, o povo do Alentejo. E vá de tarrascadas a torto e a direito. Assim:
"Pode parecer estranho, mas percebemos que somos íntimos de uma pessoa quando deixamos cair um 'foda-se' ou um 'punheta dum cabrão' de maneira descontraída.É sinal de cumplicidade. Esta cumplicidade é rara no Alentejo, até porque há mais dois pormenores a trabalhar para essa carência afectiva: não há tratamento por 'tu' e as pessoas não se tocam. nunca tinha pensado nisto, mas a verdade é que os alentejanos não se tocam."
"O porte sulista exige uma figura esfíngica, quase inerte, que recusa falar com as mãos; o alentejano vive dentro de uma camisa.-de-forças emocional que bloqueia a espontaneidade."
"As próprias mulheres descrevem os abusos com uma linguagem amoral e natural, consideram que o abuso sexual fazia parte da ordem natural das coisas como o vento a passar nos sobreiros."
"Todos os analfabetos alentejanos tinham orgulho no seu analfabetismo."
"Este orgulho analfabeto era fortíssimo no Alentejo litoral."
"Mundividência oral, braçal e de repúdio aberto pelos livros."
"O Alentejo continua a ser o velho Alentejo num ponto: a desconfiança entre pessoas."
"O verdadeiro país camiliano e violento não está no norte, está no Alentejo e no seu prolongamento serrano, a serra algarvia."
"O Alentejo assumiu o papel de Austrália, isto é, foi povoado com o refugo do norte."
"Sem surpresa, esta fauna desenvolveu uma cultura baseada na violência, na razia e até na escravatura."
"O alentejano viveu toda a vida no estado da natureza hobbesiano, na anarquia pré-política e pré-lei onde o vizinho é sempre um inimigo em potência."
"O orgulho do porte alentejano refletia-se no maltês, o homem que preferia roubar a pedir."
"Fala-se muito na ausência de Deus para descrever o Alentejo, mas julgo que antes de tudo o alentejano define-se por esta ausência de passado. Devido ao lastro da bastardia e da violência, as famílias fecham-se num presente sem acesso ao passado."
"O alentejano é um ser estranho, é um navio sem âncoras ou velas, não está ancorado a um passado familiar e não navega em direcção a um conceito redentor de futuro."
"Além de desconfiar dos vizinhos, do Estado e da Igreja, o alentejano desconfia da própria família."
"A psique alentejana parte do pressuposto de que a ligação pai-filho pode partir a qualquer momento."
"A grande especificidade do sul: a cultura do suicídio."
"A sociedade alentejana criou uma cultura que legitima o suicídio."
"Ora, o que distingue o Alentejo não é a pobreza, a paisagem, o calor, a solidão ou a genética, mas sim a arrumação do suicídio na prateleira amoral, no ângulo morto da moral."
"O alentejano, aliás, só é espontâneo para dizer 'mato-me'."
"No Alentejo, a eutanásia não é um debate, é um modo de vida; o suicídio alentejano não é um ato individual, é uma prática coletiva."
"O laço da corda no pescoço é visto como um acontecimento da história natural e não da história humana; é um ato amoral da natureza e não uma escolha moral do homem."
"A linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu caminho, não passará para as minhas filhas."
Bom, há mais, mas já chega. Creio que fica demonstrado que Henrique Raposo é um mau cientista social. Em contrapartida, é um formoso e atractivo escarrador.