sábado, 11 de dezembro de 2010

UM IMENSO ADEUS

CHEGUEI A BIRKENAU

MEMORIAL

HOMENAGEM A TODOS OS QUE PERECERAM ASSASSINADOS NO HOLOCAUSTO

CHEGUEI A BIRKENAU AO TOMBAR DO DIA NIMBOSO E O ASTRO CHICOTEAVA-SE DE CLARÕES.
“ARBEIT MARCHT FEI”—MONUMENTAL HIPOCRISIA, CEMITERIAL FOICE, OBELISCO MEFÍTICO.
O MEU OLHAR DEPENDURADO NO TEU, CRAVADO NO SORRISO QUE NÃO EXISTIA, ERA A LAMA.
CADAVÉRICA FIXAVAS-ME, EMBACIADA, A LINGUA LAVRADA, DE CORTIÇA, OS OLHOS OPACOS
TREMIAM O GEL DA LÁGRIMA ATROZ, A DE AÇO, A DESSALGADA, A SUBLIME, A ÚLTIMA, A TUA.

PENSEI NO AMOR EM WANNSEE,
NA MANSIDÃO DO LAGO DAS ÁGUAS CLARAS.
PENSEI NO CARINHO DOS BRAÇOS DADOS
E NO NAMORO DA JUVENTUDE SONHADORA, DE MÃOS ENTRELAÇADAS.
PENSEI QUE A ETERNIDADE ERA ESSE INSTANTE ÚNICO
E QUE NÃO HAVIA NUNCA FINITUDE.
TRESPASSOU-ME UM ELEVADO SENTIMENTO,
UM TEMPO QUE SE ESVAÍU SEM RETORNO.
PENSEI NO AMOR, VIVÊNCIAS IDAS,
RICAS, FUGÍDIAS QUE SE ESCOARAM
EM OUTROS MOMENTOS
DE OUTRAS PARTIDAS…

AS TARIMBAS MOFENTAS, LONGAS, SOBREPOSTAS EM ESCADINHA, ERAM CINCO.
CENTO E VINTE METROS, POUCO MAIS OU MENOS, CADA UMA,
CADA UMA PARA DUZENTOS E TRINTA ESQUELETOS
ARRUMADOS PAR A PAR,
DE OLHOS ESBUGALHADOS,
BEM ABERTOS,
ATERRADOS,
FÉMURES ENCOLHIDOS, CRUZADOS UNS NOS OUTROS, CHEGADINHOS,
TÍBIAS DE ESGUELHA, DESCARNADAS, PÉS TRAÇADOS, BEM JUNTINHOS
LEMBRAVAM FETOS GÉMEOS RECURVADOS
NO ÚTERO GRÁVIDO DE MULHERES AMPUTADAS,
INFELIZES, DEMISSAS, OBRIGADAS, EXCRUCIADAS, APAGADA A VIDA, SEPULTADAS
NA LONGA NOITE DE ESPERA DEPRAVADA ATÉ O SOL CRESCER ATRÁS DO GELO,
IMPERTURBÁVEL, INDIFERENTE, TISICO, DEFINHADO, CAQUÉTICO, FEBRIL, MACILENTO
EM NOME DO DEUS ALEMÃO, AMEN, EM NOME DAQUELE NAZISMO PEÇONHENTO.
A MORTE FRIA JÁ URRAVA O ÓDIO, A FELINA GLÓRIA JÁ CHUPAVA AS GARRAS FEROZES.
O FOCO VARRIA TUDO AQUILO, VELA IMPÚDICA, SOEZ, GARGALHO TORPE, SIFLITICO
E ALGOZES ASSESTADOS, CONVULSIVOS, TINHAM ORGASMOS LOIROS DE ESPERMA AZUL.

AS NOSSAS MÃOS ENTRELAÇADAS APERTARAM-SE,
AS BOCAS MUDAS DISSERAM QUERO-TE, BALBUCIARAM AMO-TE
MAS OS LÁBIOS DOÍDOS, GRETADOS, RESSEQUIDOS, ABANDONADOS NÃO SE DERAM.
JÁ NÃO ERA O TEMPO DO CIO NEM DA FAMILIA MEIGA NEM DOS PÁSSAROS LESTOS A CANTAR NO CÉU
NEM DAS TRENAS LEVES DE CETIM VERMELHO À VOLTA DOS TEUS CABELOS DE ÉBANO, LUSTROSOS
NEM DAS CORRIDAS LÉPIDAS PELOS CAMPOS LARGOS, VERDES, ATRÁS DAS NOSSAS CRIANÇAS DITOSAS.
JÁ NÃO ERA MAIS O TEMPO DA SOLIDARIEDADE NEM DA ALEGRIA.ERA SÓ TANATOS SÓ, ERA SÓ A MORTE SÓ,
ERA SÓ A MORTE SÓ, SÓ A BRUXA DESDENTADA SÓ, ERA O TE DEUM LAUDAMUS SÓ À CAL VIVA DELES SÓ.

BEM A CUSTO O DIA ROMPE.
A AURORA ENVERGONHADA
MOSTRA A RAMPA OLEADA
MAIS OS BALNEÁRIOS DE CIANETO PREPARADOS
LÁ NO FIM DO FUNDO,
IMUNDO,
NAUSEABUNDO,
ESCORREGADIO,
ALI MESMO DE FRONTE PARA TOMAR UM BANHO QUENTE,
ASSÉTICO, REPOUSANTE…

ENTÃO DAS CARRINHAS RONCEIRAS, GRUNHIDORAS, CORONHADAS EMPURRÁRAM-NOS.
ROLÁMOS JUNTOS, ABRAÇADOS
PARA AQUELE APRISCO VIL, INFECTO, MAQUINAL INFERNO, ORGIA SÓRDIDA DE TARADOS.

A ENTREGA DE AMBOS, UM AO OUTRO, TÃO GENUINA, AUTÊNTICA, VERDADEIRA, ERA TÃO FORTE
QUE AGARRADOS,
ENTRELAÇADOS,
DA QUEDA ESTROPIADOS,
NUM DESAFIO À MÁGOA, AO INDUSTRIAL ABATE, À IMPOTÊNCIA, À SOLIDÃO, Á NOSSA SORTE,
GRITÁMOS COM FÔLEGO EXPIRADO
ATÉ AO FUNDO, BEM SOPRADO,
EPILÉTICO,
ESGOTADO,
DEPOIS ASPIRADO,
TRUCIDADO,
ENGASGADO,
ESGANADO,
ASFIXIADO,
IRREMEDIAVELMENTE GARROTADO,
VIVA O AMOR, VIVA A LIBRDADE
E NÃO MORREMOS.

AINDA PERMANECEMOS
DE MÃOS DADAS,
BEM APERTADAS,
COM NÓS DE MARINHEIRO
UNIDAS,
AGARRADAS,
BEM FUNDIDAS,
AMARRADAS.

DEIXA QUE A HISTÓRIA DO NADA CONTE NADA DE NÓS SEJA A QUEM FOR.
DEIXA QUE A HISTÓRIA DE TUDO NÃO FALE MAIS DE NÓS PARA O FUTURO.
DEIXA-TE LIVRE NA BRUMA ESQUECIDA DAS NOITES CÁLIDAS SEM TEMPO,
Ó MINHA BELATRIZ, AMANTE QUERIDA, CAMINHAS COMIGO AGORA, AINDA,
VENS CADA VEZ MAIS PARA AS LONJURAS TRANSLUZENTES, INCORRUPTAS
PORQUE NOS AMAMOS MUITO, MUITO MAIS PARA LÁ DO TEMPO DE SEMPRE,
GAIVOTA DIAMANTINA, ESVOAÇANTE,
MEU AMOR, TERNURA PURA,
MEU VAGALHÃO INDOMÁVEL, INUNDANTE
VOEMOS PARA LÁ DO MAIS QUE ISTO JÁ.
VOEMOS MUITO MAIS ALÉM DOS LIMITES,
PARA ALÉM DO HORIZONTE ANIL E RÚTILO E DENSO E PERIFÉRICO E REAL,
GRITO DE AMOR CELESTINO, GRITO DE LIBERDADE ENTORNADA NOS ARES,
ESTREMEÇÃO DOS NERVOS A ENFOLHAR SEMPRE A NOSSA ALMA DE PELE,
AVE CANORA, VIOLINO DE CRISTAL, FAVORITA, SERÁFICA, MINHA MELODIA,
ALVORADA, UM CLAMOR, UMA TROMBETA A ONDULAR AS MONTANHAS NUAS!


DANIEL NOBRE MENDES

2010-02-27